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Mentiras que rendem

Olavo de Carvalho
O Globo, 12 de maio de 2001

 

A no��o geral consagrada que se transmite nos livros acad�micos e na m�dia sobre o golpe de 1964 n�o passa de uma gigantesca opera��o de despistamento, calculada para enfatizar uma duvidosa inger�ncia americana de modo a ocultar das aten��es populares a mais que provada intromiss�o do bloco sovi�tico nos conflitos nacionais da �poca. Cria��o de ativistas que mal escondem seu comprometimento pol�tico, ela � obra de pura propaganda destinada a inculcar no p�blico, em conson�ncia com a orienta��o geral da desinforma��o comunista, a impress�o t�cita de que a Guerra Fria n�o se travou entre os EUA e as pot�ncias comunistas, mas entre os EUA e her�icos movimentos nacionalistas do Terceiro Mundo. Digo �impress�o t�cita� porque, admitida em voz alta, essa premissa se autodesmascararia no ato; por isto � preciso disfar��-la sob mil e uma conclus�es que se tiram dela sem declar�-la.

A prova mais patente da falsifica��o � o contraste entre o n�mero de conjeturas que circulam sobre a a��o local da CIA nesse per�odo, fundadas em ind�cios circunstanciais sem uma s� prova documental ou testemunhal, e a omiss�o completa e sistem�tica de refer�ncias � dos servi�os secretos comunistas, malgrado a profus�o de documentos que a confirmam.

Quantos livros, artigos, reportagens e entrevistas circulam sobre �a CIA no Brasil�? Milhares. Quantos sobre �a KGB no Brasil�? Nenhum.

Numa d�cada em que a abertura dos arquivos sovi�ticos vem comprovando a veracidade de praticamente tudo o que a velha esquerda estigmatizava como �mentiras imperialistas�, o desinteresse dos historiadores brasileiros por averiguar essa parte suja da hist�ria revela sua compuls�o de varrer para baixo do tapete os fatos politicamente inconvenientes.

Entre esses fatos, a simples confiss�o do espi�o theco Ladislav Bittman de que em 1964 o servi�o secreto de seu pa�s tinha na sua folha de pagamento um pequeno ex�rcito de jornalistas brasileiros e controlava um jornal inteiro j� bastaria para derrubar toda a mitologia consagrada. Esta s� permanece de p� porque os perdedores se tornaram retroativamente vencedores atrav�s da manipula��o da hist�ria.

Mas a nova hegemonia esquerdista que possibilitou esse estado de coisas n�o � fen�meno exclusivamente brasileiro. Em 1997 David Horowitz observava: �A situa��o nas universidades era espantosa. Os marxistas e socialistas que tinham sido refutados pelos acontecimentos hist�ricos eram agora o establishment oficial do mundo acad�mico. O marxismo tinha produzido os mais sangrentos e opressivos regimes da hist�ria humana � mas, ap�s sua queda, havia mais marxistas no corpo docente das universidades americanas do que em todo o antigo bloco comunista.�

Id�ntica esquisitice nota-se na Fran�a, em Portugal, na It�lia � na Europa ocidental inteira, com exce��o da Inglaterra, onde os intelectuais conservadores fizeram 40 anos atr�s sua pr�pria �revolu��o cultural� (na base, ali�s, da pura luta de argumentos e sem recorrer aos truques sujos da �ocupa��o de espa�os�, t�o caros �s almas gramscianas).

Derrotado como regime pol�tico-econ�mico, o socialismo ganhou uma miraculosa sobrevida como mitologia cultural do capitalismo. Dois fatores contribu�ram para isso: o prodigioso florescimento da ind�stria cultural, que deu espa�o para a multiplica��o sem fim da pseudo-intelectualidade universit�ria e midi�tica; e a distribui��o de uma parcela consider�vel das verbas da KGB, privatizadas discretamente logo antes da queda da URSS e espargidas por toda parte como uma b�n��o urbi et orbi de S�o Gorbatchov.

Mas, em parte, o fen�meno � inerente � natureza do capitalismo, que prospera industrializando sua pr�pria autoflagela��o como uma esp�cie de vacina anti-socialista. O com�rcio de mitos esquerdistas pode coexistir indefinidamente com o crescimento do capitalismo porque vicia as classes letradas em lucrar com o abuso das liberdades capitalistas. Os beneficiados por esse com�rcio sabem que ele n�o sobreviveria um dia ao advento do regime comunista, o qual por isto mesmo se torna tanto mais influente como mito inspirador da produ��o cultural quanto mais a tenta��o de realiz�-lo como proposta econ�mica vai desaparecendo do horizonte vis�vel. A for�a dos mitos, afinal, depende precisamente de que ningu�m os submeta ao teste da pr�tica.

Assim, o socialismo perdeu toda subst�ncia pr�pria ao tornar-se puro �dio fingido ao capitalismo que o alimenta. Nenhuma profiss�o, hoje, tem futuro garantido como a de intelectual de esquerda: quanto mais voc� ganha dinheiro, fama e autoridade moral falando mal do capitalismo, mais est� livre do risco de que a ditadura do proletariado venha tir�-lo do seu confort�vel patamar de classe m�dia ascendente. Se Marx exagerou ao dizer que as bases econ�micas da vida determinam a consci�ncia dos homens, � verdade que elas determinam a de alguns. Principalmente a desse tipo de intelectuais: n�o � de espantar que indiv�duos cuja subsist�ncia profissional depende de uma farsa sejam tamb�m mentirosos, compulsivamente, no conte�do daquilo que dizem e escrevem. 

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A todos aqueles que, lutando contra a ditadura militar brasileira, foram pedir ajuda e inspira��o ao governo de Fidel Castro, prometo solenemente jamais voltar a escrever uma s� palavra contra o socialismo se voc�s me provarem as seguintes coisas: 1. Que em Cuba havia mais liberdade de imprensa que no Brasil. 2. Que em Cuba havia menos prisioneiros pol�ticos que no Brasil (se voc�s n�o quiserem, n�o precisam nem mesmo levar em conta a diferen�a de popula��o dos dois pa�ses; contento-me com n�meros absolutos). 3. Que em Cuba havia um partido de oposi��o funcionando com a liberdade, mesmo limitada, do MDB. 4. Que a ditadura militar brasileira matou mais gente que a ditadura cubana (novamente, aceito n�meros absolutos). Se voc�s me provarem essas coisas, prometo inscrever-me no PT e tornar-me o mais devotado dos seus militantes. Se n�o provarem, terei todo o direito e at� o dever de continuar julgando que voc�s s�o uns embrulh�es e mentirosos; que voc�s n�o lutavam pela democracia cois�ssima nenhuma e que tudo o que voc�s queriam era fazer aqui o que Fidel Castro fez em Cuba, com a �nica diferen�a de que voc�s pr�prios estariam no papel de Fidel Castro.