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Motivos da filosofia

Olavo de Carvalho
O Globo, 10 de fevereiro de 2001

 

As id�ias influenciam o curso das coisas na sociedade, decerto, menos pela validade objetiva do seu conte�do do que por servir de s�mbolos que condensam sentimentos coletivos -- desejos, �dios, temores, esperan�as. � poss�vel, at�, que toda id�ia brote desses sentimentos. Mas a transforma��o do sentimento em id�ia tem v�rios graus poss�veis de elabora��o. O simples desejo de expressar o anseio coletivo n�o � a �nica motiva��o que leva um fil�sofo a criar uma doutrina. H� tamb�m o impulso de coer�ncia e o simples desejo de conhecer a realidade, de abrir-se � variedade dos fatos mesmo quando contrariem os nossos sentimentos e quando n�o possam facilmente ser reduzidos � unidade de uma explica��o. Esses tr�s motivos de filosofar s�o, por assim dizer, naturais. A diferente dosagem com que entrem na f�rmula pessoal define o estilo e o modo de ser de cada fil�sofo. O tipo extremo, no qual um desses impulsos se agiganta ao ponto de engolir os outros dois, � t�o raro quanto o composto equilibrado dos tr�s. Mas "que los hay, los hay".

O tipo mesmo do fil�sofo "expressivo" � Nietzsche. Ele costumava comparar-se a um perdigueiro, farejando o vento em busca do poss�vel, do latente, que depois ele cristalizava em s�mbolos liter�rios de um poder sugestivo quase hipn�tico. � natural que este estilo de pensamento, por estar ainda muito pr�ximo da imagina��o po�tica, se expresse numa linguagem descont�nua, afor�stica, metaf�rica. Por isto Nietzsche n�o tem propriamente uma doutrina, mas uma massa �gnea de doutrinas virtuais, umas em conflito com as outras e algumas em conflito aberto com os fatos. O brilho da sua forma liter�ria encobre e revela, ao mesmo tempo, a hesita��o informe de um saber que se anuncia e n�o acaba de nascer. Oscilando entre o futurismo her�ico e a corros�o decadentista, o nietzscheanismo � uma aurora vacilante que perde o seu momento e n�o se levanta jamais.

No extremo oposto est� Spinoza. Seu apego � coer�ncia l�gica era tanto, que ele n�o apenas exteriorizou sua doutrina sob a forma acabada e plena de uma dedu��o geom�trica, mas ainda proclamou a absoluta soberania cognitiva da pura dedu��o racional e desprezou como in�til e enganosa a experi�ncia dos fatos. O spinozismo � o esp�rito de sistema levado �s suas �ltimas conseq��ncias. H� um encanto est�tico tamb�m a�, mas n�o do tipo verbal: � a beleza abstrata da unidade l�gica, um diamante boiando no infinito, fora do tempo, longe da "agita��o feroz e sem finalidade" deste nosso mundo. Tentativas de reintroduzi-lo no tempo, na a��o, no emp�rico, s� mostram a falta de pudor de exegetas que se apressam a interpret�-lo �s avessas para p�-lo a servi�o de fins pr�ticos que n�o eram nem poderiam ser os dele.

Assim como o primeiro tipo tem algo do poeta ou do or�culo, e o segundo do artista pl�stico, o perfeito respeitador dos fatos, sem deixar de ser fil�sofo, aproxima-se antes do modelo do cientista emp�rico. � Max Weber. Weber meteu na cabe�a um problema -- o das rela��es entre economia e moral religiosa -- e, na tentativa de resolv�-lo, criou instrumentos intelectuais que perfazem, no fim das contas, toda uma filosofia das ci�ncias. Se jogarmos a sua obra fora e dela s� conservarmos os seus escritos de epistemologia e m�todo, eles j� bastar�o para fazer dele um astro de primeira grandeza. Mas, acumulando fatos em cima de fatos e indo busc�-los nos registros de todas as civiliza��es ao alcance das suas fontes, ele ampliou de tal modo a �rea de sua investiga��o que, tendo lan�ado inicialmente uma hip�tese, morreu sem ter chegado a saber exatamente se era verdadeira ou falsa. Mas seu legado incompleto � precioso. Ele deixou-nos algo mais que um problema e um m�todo. Deixou-nos um exemplo de probidade intelectual levada at� o extremo do auto-sacrif�cio.

Em geral, os fil�sofos t�m um pouco de cada uma dessas tend�ncias, arranjadas em padr�es mais ou menos felizes. Oswald Spengler, por exemplo, � uma mistura da imagina��o simb�lica de Nietzsche com a �nsia weberiana de abranger todos os fatos. Faltando-lhe o senso da coer�ncia l�gica, n�o lhe resta outro instrumento de unifica��o dos fatos sen�o o s�mbolo mesmo. Por isto sua filosofia da hist�ria � antes uma met�fora, uma po�tica da hist�ria.

Uma combina��o mais freq�ente � a do segundo tipo com o terceiro: aquele misto de investigador factual probo e sistematizador rigoroso, mas seco e sem imagina��o, que nas �pocas de prest�gio universit�rio impera do alto das c�tedras como um �rbitro do razo�vel e do irrazo�vel. Penso em Victor Cousin, em L�on Brunschvicg ou em tantos, tantos dentre os neo-escol�sticos! Fazem um bom trabalho e s�o importantes durante algum tempo, mas depois s�o esquecidos.

A combina��o mais letal � a do primeiro com o segundo tipos, sem nada ou quase nada do terceiro. A mistura do farejador de tend�ncias com o construtor de sistemas, sem a humildade do cientista ante os fatos, produz o arquiteto de desastres. Nele a possibilidade captada no ar se transmuta, pela estrutura��o l�gica, em projeto de a��o que alia, � for�a arregimentadora do s�mbolo e � certeza racional da ordem, o total desprezo pela realidade quando ela insiste em contrari�-lo. � o homem que n�o compreende nem quer compreender o mundo, mas transform�-lo � imagem e semelhan�a de um desejo enrijecido em sistema. Infelizmente, pela pr�pria l�gica das coisas, este �, de todos os tipos, puros ou combinados, aquele que tem mais for�a de a��o imediata sobre o contorno social. � Karl Marx.

O equil�brio das tr�s tend�ncias � uma felicidade raras vezes alcan�ada. O homem que a realiza tem a fertilidade do primeiro tipo, a coer�ncia do segundo, a honestidade cient�fica do terceiro. Sua filosofia, mesmo temporariamente ignorada pelos seus contempor�neos, � sempre uma for�a ben�fica que atravessa os s�culos, inspirando, ensinando, civilizando. Os fil�sofos deste tipo s�o uma b�n��o para a humanidade. Exemplos? Bem, n�o me resta muito espa�o para dizer por que, mas, prometendo me explicar melhor algum dia, voto, para o momento, em Arist�teles e Leibniz.

PS - No meu site da internet um de meus artigos vem antecedido do aviso de que foi rejeitado por todos os peri�dicos a que o ofereci. Embora a frase obviamente n�o implique que eu o tenha oferecido a todos os peri�dicos do pa�s, alguns engra�adinhos parece que da� deduziram, e passaram a insinuar, que fui censurado no GLOBO. N�o leram ou fizeram que n�o leram a data do artigo, muito anterior ao in�cio de minha colabora��o neste jornal. Proclamar os m�ritos de uma publica��o que sabe respeitar a liberdade de seus colaboradores n�o � s� um dever: � um prazer. Alegremente, pois, informo que aqui jamais sofri censura ou restri��es de esp�cie alguma, por mais que isto doa a pessoas que, n�o gostando nem de mim nem do GLOBO, muito apreciariam que eu as sofresse.