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Mostrando servi�o

Olavo de Carvalho
O Globo, 13 de janeiro de 2001

 

Se comparar a gravidade relativa dos delitos fosse o mesmo que enaltecer a pr�tica de algum deles, o C�digo Penal inteiro seria uma vasta apologia do crime. Basta essa constata��o l�gica inicial para evidenciar o seguinte: fazer do meu artigo de s�bado passado uma "defesa da tortura" requer uma dose anormalmente grande, seja de idiotice, seja de m�-f�.

Em casos an�logos, procuro sempre apostar na hip�tese da idiotice, para poder continuar acreditando que h� algo de bom no fundo das almas mais estragadas.

No caso presente, n�o posso. Nem o sr. Marcio Moreira Alves � um idiota, nem � idiota a dona Cec�lia Coimbra. S�o ambos caluniadores maliciosos, perversos, que, com plena consci�ncia da mentira, atribuem a um jornalista opini�es que ele n�o tem, com o intuito preciso de danar-lhe a reputa��o para em cima da sua ru�na construir a prosperidade do neg�cio mais sujo que existe na face da Terra: o com�rcio do �dio.

No meu artigo, afirmei com todas as letras que tortura � crime. Repeti isso tr�s vezes. Acrescentei apenas que maltratar � menos grave que matar - uma asser��o de simples bom-senso, que ali�s nem teria sentido enunciar se eu n�o visse na tortura um crime, de vez que, em l�gica, a compara��o de graus subentende a identidade de g�nero.

Nada podendo alegar contra esse argumento, que � que faz o sr. Moreira? Faz aquilo que, para um tipo como ele, � a coisa mais f�cil: ele mente. Mente, atribuindo-me prop�sitos que brotam da sua vontade de caluniar e n�o daquilo que escrevi.

Por que, em vez de se ater ao que l�, o sr. Moreira prefere especular inten��es ostensivamente discordes com a letra do texto e, tomando-as com obscena afoiteza como premissas certas e demonstradas, us�-las como armas para difamar algu�m de cujos atos e de cuja moralidade ele, rigorosamente, ignora tudo? N�o preciso, como ele, conjeturar motivos. Se ele n�o me conhece, eu o conhe�o. Sei por que ele faz o que faz. Ele mesmo o sugere, na express�o final do seu artigo: "Separar quem lutou de peito aberto dos que se esconderam." Nos dias em que o presidente Costa e Silva fechou o Congresso, inaugurando o endurecimento e a perpetua��o do regime que seu antecessor concebera como breve interregno autorit�rio curativo, fiz o que achei que devia fazer: entrei para o Partido Comunista. N�o era a coisa mais s�bia, muito menos a mais confort�vel. Ela me custou, de imediato, perigos e incomodidades; a longo prazo, o arrependimento de ter, na luta contra uma ditadura encabulada e capenga, colaborado �s tontas com a mais totalit�ria e assassina das tiranias. Mas, enquanto os meus problemas come�avam, os do sr. Moreira terminavam: naquele momento ele embarcava para Paris, onde, instalado numa bela cobertura em bairro elegante, p�de desfrutar com tranq�ila seguran�a as gl�rias hauridas no arremedo teatral de hero�smo com que dera um gran finale � sua carreira de histri�o parlamentar. Por isso nunca pude admirar aquilo que ele imagina ser a sua coragem, e que Benedito Valladares descreveu melhor como uma aptid�o de bancar o Tiradentes com o pesco�o dos outros. N�o me perd�o levianamente de ter sido comunista, nem alego para enobrecer tal desatino os motivos autodignificantes com que tantos hoje procuram maquiar sua cumplicidade com o mal do s�culo. Mas n�o posso, em s� consci�ncia, me acusar de covardia. Por ter sacrificado minha juventude e minha seguran�a em prol da esquerda perseguida � que tenho hoje o estofo moral para falar duro com a esquerda triunfante. J� o sr. Moreira, que tudo deve a ela e que nunca lhe deu sen�o o brilho mundano da sua presen�a nas rodas de gente bem, tem agora de justificar retroativamente sua exist�ncia mostrando servi�o. E que servi�o, sen�o o mais baixo e infame, o servi�o do intrigante e caluniador?

J� de dona Cec�lia nada sei, a n�o ser que preside uma entidade consagrada a deformar o ju�zo moral das pessoas, inoculando nele o v�cio de avaliar tudo com dois pesos e duas medidas. Cada palavra sua visa a bloquear a intelig�ncia do p�blico, impedindo-o de comparar discursos com discursos, atos com atos, fins com fins, meios com meios. O simples cotejo equilibrado seria letal a uma campanha que arrecada fundos dos fi�is que converte ao manique�smo. Por isso, ao falar de guerrilheiros e militares, ela tem de confrontar os belos ideais dos primeiros com a viol�ncia crua dos meios empregados pelos segundos, sem nenhum direito ao vice-versa. Claro: ela j� escolheu a priori os mocinhos e os bandidos, reservando aos primeiros o atenuante do relativismo hist�rico e aos segundos a senten�a implac�vel da moral absoluta. N�o vale, por exemplo, perguntar: se os her�is de dona Cec�lia queriam a democracia, por que foram buscar apoio e inspira��o ideol�gica em ditaduras incomparavelmente mais ferozes do que aquela que combatiam? Seriam eles idiotas ao ponto de imaginar que Fidel Castro ou Mao Ts�-tung desejavam instaurar aqui a liberdade que haviam esmagado nos seus pr�prios pa�ses? Ou, ao contr�rio, eram apenas hip�critas como a pr�pria dona Cec�lia? Feitas essas perguntas, torna-se imposs�vel recusar aos militares uma compara��o justa. Por isso era preciso evit�-las, e nisto dona Cecilia foi �tima.

Mas mesmo uma mente astuta �s vezes se trai. Ap�s enaltecer os lances de guerrilha como express�es superiores do idealismo em contraste com a covardia da tortura, ela aponta, � guisa de prova suprema da maldade e baixeza dos militares, um t�pico lance de guerrilha: acusa-os de... jogar bombas. N�o satisfeita com esse ato falho, ela se mela mais ainda no rid�culo da mentira ao proclamar que tais bombas fizeram "centenas de mortos e desaparecidos". Dos mortos, ela cita o total de exatamente um: o pr�prio criminoso, o not�rio auto-explodido do Riocentro. N�o podendo nomear mais nenhum, arredonda a conta com a evasiva "e desaparecidos". Mas que raios de bombas seriam essas, capazes de desmaterializar peda�os de cad�veres?

Por escandalosos que sejam esses meios de argumenta��o, seu emprego � bem coerente com a finalidade da campanha de dona Cec�lia: despertar �dio unilateral a uma fac��o, amor devoto � outra, sem ter na m�nima conta a l�gica, a justi�a ou a realidade. Por isso, ao acusar-me de "defesa da tortura" ela sabe que, como o sr. Moreira, mente para mostrar servi�o. E, quando se gaba do apoio internacional que recebe no exerc�cio dessa sujeira, temos a certeza de que seus esfor�os s�o bem recompensados.