Mis�ria ling��stica
Olavo de Carvalho
Aquela hist�ria do sujeito que tinha apenas tr�s neur�nios - o de emiss�o, o de recep��o e o de bloqueio geral - j� se tornou demasiado complexa para ser verdade. Tr�s, afinal, j� � um silogismo, o come�o de uma dial�tica. O normal, hoje, � ter um neur�nio s�, que acende ou apaga por reflexo condicionado. Isso, evidentemente, se voc� � um intelectual, um privilegiado que conseguiu, mediante aprendizado universit�rio, condicionar o neur�nio. Se n�o, ele acende ou apaga ao acaso. Por exemplo, outro dia escrevi que o fascismo foi um dos movimentos revolucion�rios do come�o do s�culo. Um jornalista que me leu, sendo comunista desde o ADN, adorando revolu��es e n�o concebendo que algu�m desgostasse delas, entendeu que era um elogio do fascismo. No mesmo artigo, mostrei que o dogma comunista que explica o nazismo como ideologia capitalista era uma piada grotesca, dado que os nazistas identificavam "capitalistas" com "judeus" e odiavam por igual as duas coisas, estando nisto, ali�s, perfeitamente concordes com Karl Marx. Sabem o que o sujeito concluiu da�? Que eu estava falando mal dos judeus! � bem poss�vel que essa rea��o seja autodefesa neur�tica de um comunista, ferido no seu ponto fraco de disc�pulo de um racista professo. Karl Marx, afinal, era o mesmo que se referia aos russos como "lixo �tnico", celebrava como pre�o do socialismo a destrui��o de uns quantos "povos inferiores" e, no seu c�rculo familiar, usava costumeiramente de express�es do tipo "negro pern�stico". O seguidor devoto de um guru desse naipe tem raz�es para se sentir de rabo preso e espumar de �dio � simples men��o da afinidade de nazismo e comunismo, afinidade que, no regime comunista, o rabino Schneerson e seus disc�pulos bem experimentaram na carne, e que, � claro, os comunistas fazem tudo para esconder, mesmo � custa de projetar inten��es anti-semitas num not�rio apologista do juda�smo. Mas, enfim, por mal�cia e burrice ou por burrice em estado puro, o fato � que, odiando capitalistas e n�o conseguindo imaginar que algu�m julgasse normal e decente a profiss�o de capitalista, o sujeito achou que falar em capitalistas judeus era falar mal dos judeus. Isso � o que, no Brasil de hoje, se chama "ler". N�o direi quem � o jornalista, em primeiro lugar, porque, por mais que eu o diga, isto n�o far� com que ele seja algu�m. Segundo, porque n�o se trata de um caso isolado de burrice individual, e sim de sintoma de burrice ambiental. Terceiro, porque n�o acredito poder desinfetar o ambiente jogando naftalinas nas baratas uma por uma. Infelizmente, tamb�m n�o conhe�o nenhum spray intelectual que, espalhado no ar, fa�a aumentar a quota de neur�nios per capita. S� o que posso � tentar extrair, dos casos singulares, o que t�m de gen�rico que ajude a explicar outros casos. No exemplo acima, o not�vel � que o cidad�o, vendo em mim um direitista, um inimigo portanto, nem por um instante suspeitou que no vocabul�rio do inimigo as palavras teriam valores diversos (a rigor, inversos) dos que tinham no seu. Perceber essas diferen�as � um instinto sem�ntico, que se aprimora pela leitura. Sua perda ou atrofia assinala o analfabetismo funcional. Observada num profissional das letras, � alarmante. No jornalismo de duas d�cadas atr�s, t�o �bvio rombo de compreens�o n�o passaria despercebido ao mais sonolento dos copy-desks. Por favor, n�o me atribuam intuito pol�mico ou de revide. N�o se pode armar uma discuss�o partindo de t�o baixo. Este caso, para mim, � apenas uma amostra de laborat�rio, n�o mais odiosa, em subst�ncia, do que uma lombriga ante o analista cl�nico. S� que, surpreendidas em estado de prolifera��o pand�mica, at� lombrigas se tornam tem�veis. E o fato � que o modus legendi do aludido cidad�o est� se tornando de uso geral. A l�ngua dos nossos debates p�blicos est� se reduzindo a um instrumento no qual se pode xingar, denunciar, acusar, caluniar - mas n�o se pode compreender nada. O escritor que, por medo de interpreta��es maliciosas, se rebaixe a escrever nos c�nones dela, logo deixar� de ser um escritor para ser um gar�om de fast-food mental. As grandes crises e revolu��es fazem-se sempre antecipar, na esfera ling��stica, por uma simplifica��o redutiva que rebaixa a comunica��o a uma troca de estimula��es padronizadas. Hyppolite Taine descreve, nas "Origines de la France Contemporaine", a longa degrada��o que foi tornando a l�ngua francesa do s�culo XVIII um sistema de f�rmulas prontas, bom para as generalidades da orat�ria revolucion�ria, mas no qual n�o se podia traduzir Dante nem Shakespeare, criar personagens de carne e osso ou expressar uma �nica impress�o viva. Thomas Mann, Jacob Wassermann e sobretudo Karl Kraus observaram an�logo decl�nio na l�ngua alem� do pr�-nazismo. A l�ngua portuguesa do Brasil, nas �ltimas d�cadas, come�ou por perder duas pessoas verbais - fato in�dito nos idiomas ocidentais modernos - restringiu drasticamente o vocabul�rio das classes "cultas", aboliu a prioridade dos termos pr�prios e hoje vai perdendo, com o faro das nuances, at� mesmo a capacidade de distinguir entre sentido direto e indireto. O que nos falta � um Karl Kraus para documentar essas perdas e revelar como os totalit�rios de sempre tiram proveito da mis�ria ling��stica que eles mesmos criaram.
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