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A mentira como sistema

Olavo de Carvalho
Jornal da Tarde, 23 de novembro de 2000

 

Logo que me afastei do Partido Comunista, aos 22 anos, conservei uma vis�o do marxismo como teoria errada, mas valiosa. Tr�s d�cadas de estudos persuadiram-me de que ele � uma doutrina n�o apenas falsa, mas mentirosa at� � medula.

Marx mente nos seus pressupostos filos�ficos, mente na sua apresenta��o da Hist�ria, mente nas suas teorias econ�micas e mente nos dados estat�sticos com que finge comprov�-las. De sua obra nada se aproveita, exceto o treino dial�tico que se ganha em duelar com um mentiroso astuto.

Perguntar se suas mentiras s�o propositais ou inconscientes - e nesta �ltima hip�tese tentar salvar uma suposta "boa inten��o" por tr�s da falsidade - � ignorar por completo as diferen�as entre consci�ncia normal e sociop�tica.

Karl Marx foi com toda a evid�ncia um sociopata, uma alma na qual a nebulosa mistura de verdade e falsidade era um tra�o permanente, uma compuls�o irresist�vel, n�o se aplicando a esse caso a distin��o entre a reta inten��o da vontade e as falhas involunt�rias da intelig�ncia, com que explicamos os erros dos homens normais.

� imposs�vel n�o perceber algo dessa mistura j� em Hegel, seu antecessor e, de certo modo, mestre. Toda a filosofia de Hegel funda-se na premissa de que "o Ser, sem suas determina��es, � id�ntico ao Nada", uma afirma��o � qual ele confere validade objetiva absoluta embora sabendo que ela s� tem significado quando referida n�o ao Ser e sim apenas ao conhecimento que temos dele, e que ampliada para fora desse dom�nio � uma senten�a totalmente desprovida de significado. Digo "embora sabendo" porque � imposs�vel que um homem dotado da destreza l�gica de Hegel n�o percebesse, nessa pedra fundamental da sua doutrina, a rachadura l�gica entre uma meia-verdade e um "flatus vocis". Mas Hegel, firmemente decidido a construir um sistema universal, n�o se deteve ante o que, aos olhos de sua ambi��o, pareceu um detalhe desprez�vel. Seguiu em frente, misturando em doses cada vez mais complexas as meias-verdades �s meias mentiras � medida que a constru��o se avolumava.

Marx partiu dessa monstruosa falsifica��o teor�tica para erigir, em cima dela, a falsifica��o da exist�ncia real, a a��o historicamente falseada de milh�es de seres humanos que consagraram suas pr�prias vidas e sacrificaram milh�es de vidas alheias no altar da mentira sistematizada.

Como foi poss�vel que chegasse a recrutar tantos disc�pulos, a agitar t�o vastas for�as sociais e pol�ticas, a desfigurar a face do mundo a ponto de torn�-lo indisting��vel do inferno?

O sociopata, como o esquizofr�nico, � uma alma dividida, mas dividida de tal modo que as partes separadas, sem jamais juntar-se num confronto consciente, concorrem para uma meta comum determinada pela vontade, o que o torna notavelmente capacitado para a a��o - ao contr�rio do esquizofr�nico - na mesma medida em que incapacitado para o julgamento moral de si pr�prio.

Enquanto na psique normal a base da a��o eficaz � a coer�ncia entre consci�ncia cognitiva e vontade, no sociopata � a separa��o delas que produz aquela desenvoltura, aquela liberdade, que lhe permite agir eficazmente onde o homem s�o seria detido por escr�pulos de consci�ncia. A for�a de vontade, no sociopata, n�o reflete a firmeza de uma convic��o madura e consciente, mas a inescrupulosidade de um desejo avassalador que vence todas as hesita��es sufocando a voz da consci�ncia quando esta lhe cobra os direitos da verdade ou simplesmente lhe relembra a fragilidade da condi��o humana. A for�a do homem s�o est� na unidade da sua alma; a do sociopata, na impossibilidade de unificar-se, que o leva a espalhar a dubiedade e a confus�o por onde passe. A primeira � id�ntica � "simplicidade" b�blica; a segunda, � complexidade irremedi�vel de uma ruptura interna que se automultiplica indefinidamente. A primeira reflete o "sim, sim - n�o, n�o" do mandamento de Jesus; a segunda � a voz do "biling�is maledictus", o homem de l�ngua b�fida incapaz de dizer sem desdizer.

Da� a diferen�a entre a dial�tica cl�ssica, de S�crates e Arist�teles, e a dial�tica moderna de Hegel e Marx. A primeira era a arte de reduzir as contradi��es � unidade; a segunda, a t�cnica de faz�-las proliferar at� que n�o possam mais ser abrangidas na unidade de uma vis�o intelectual e extravasem para a vida ativa, semeando o �dio e a guerra sem fim. A primeira supera as contradi��es da "pr�xis" na unidade superior da consci�ncia contemplativa; a segunda alastra para o reino da "pr�xis" o �dio a si mesmo que atormenta o intelecto incapaz de repouso contemplativo.