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L�gica da moral

Olavo de Carvalho
Jornal da Tarde, 4 de janeiro de 2001

 

Se h� um princ�pio moral universal, � aquele que, para abreviar, chamarei "princ�pio de autoria": cada um � autor de seus atos. Esta obviedade suprema tem conseq��ncias que, embora sejam igualmente �bvias, muitas vezes s�o negadas na pr�tica. A ocorr�ncia desse fen�meno assinala, nas pessoas envolvidas, uma consci�ncia moral frouxa e autocomplacente. Quem quer que negue implicitamente o princ�pio de autoria falseia toda a moralidade.

Mas, justamente porque as dedu��es l�gicas no caso s�o bem f�ceis de fazer, e de fato se fazem quase que por instinto, � evidente que o falseamento delas, quando ocorre, raramente se d� por simples erro l�gico, mas denota quase sempre, no autor do ju�zo, algum fundo falso. N�o por coincid�ncia, as pessoas moralmente frouxas s�o as que mais se apressam a emitir ju�zos morais severos com pouco conhecimento de causa. Invariavelmente, acabam caindo na nega��o do princ�pio de autoria, e assim revelam a imoralidade de suas inten��es por tr�s de sua m�scara de probidade. S�o pessoas que carregam por dentro a ang�stia difusa de culpas mal conscientizadas, das quais buscam aliviar-se mediante acusa��es a terceiros. A pol�tica � o campo preferencial de atua��o desses falsos moralistas, porque em pol�tica sempre se pode falar de maneira amb�gua e irrespons�vel, procurando por exemplo atingir pessoas determinadas e concretas atrav�s de acusa��es gen�ricas a entidades abstratas e indeterminadas (classes sociais, modelos econ�micos), tentando dar � mera responsabilidade pol�tica a conota��o de grave culpa moral pessoal, etc.

Se cada um s� est� obrigado, em princ�pio, a responder por seus pr�prios atos, � tamb�m um ato assumir livremente a responsabilidade por atos alheios, como os c�njuges se responsabilizam mutuamente por suas obriga��es econ�micas, ao casar-se. As responsabilidades do indiv�duo podem estender-se em c�rculos conc�ntricos cada vez mais amplos, indo das obriga��es mais diretas, absolutas e incondicionais �s mais indiretas, abstratas e relativas, como a do governante que, pela "�tica da responsabilidade" weberiana, deve assumir a culpa at� mesmo pelos resultados mais indesejados e imprevis�veis de suas decis�es, tornando-se ent�o "politicamente" culpado sem verdadeira culpa moral pessoal.

Essa escala que vai da responsabilidade pessoal direta at� a responsabilidade indireta e quase simb�lica � bastante f�cil de apreender e, como eu j� disse, � de fato apreendida quase instintivamente... exceto quando o desejo de inculpar � mais forte que a raz�o. Neste caso, muito freq�ente na pol�tica, uma linguagem de imputa��o moral direta � usada contra um acusado que n�o poderia ter responsabilidade pessoal concreta nos fatos em quest�o, como por exemplo quando o criador de uma pol�tica econ�mica desastrada (supondo-se que ela o seja mesmo) � chamado de "assassino" por conta de uma complexa conjetura estat�stica que associa "�ndices de desemprego" a "�ndices de mortalidade" e, num salto l�gico formid�vel, atribui a esse indiv�duo a autoria de n�o sei quantas mortes.

Esse tipo de ret�rica � um evidente charlatanismo, e seu usu�rio deve ser considerado, desde logo, desqualificado para opinar em quest�es morais. Por exemplo, os autores do Livro Negro do Capitalismo, par�dia grotesca do Livro Negro do Comunismo, procuram nivelar, como igualmente abomin�veis, as execu��es de dissidentes decretadas pessoalmente por Stalin e Fidel Castro e as mortes por desnutri��o acontecidas na �frica ou na �sia e atribu�das, mediante longas cadeias de conjetura��es econ�micas, a efeitos indiretos de pol�ticas econ�micas adotadas nos pa�ses ricos. Esse nivelamento nega, na base, o princ�pio de autoria, e n�o � desculp�vel como mero erro de l�gica cometido com boas inten��es. Os respons�veis por esse tipo de propaganda desmascaram-se, no ato, como pessoas moralmente escorregadias e indignas de confian�a.

Similarmente, o homem que, nada tendo cedido de seus bens aos pobres, discursa iradamente contra governantes que n�o tomaram tais ou quais medidas que no seu entender eliminariam a pobreza est� aplicando o princ�pio de autoria de maneira d�plice e autocontradit�ria: desobrigando-se de fazer pelos desamparados o pouco que est� ao seu alcance, ele cobra o muito que sup�e estar ao alcance de outros, autonomeando-se assim um juiz mais habilitado a julgar aquilo que s� conhece por conjetura do que aquilo que sabe por experi�ncia direta. Quanto mais esse indiv�duo discursar contra os outros, mais estar� se desmascarando a si pr�prio.