Tr�gica leviandade
Olavo de Carvalho
Incapazes de transformar a si mesmos, os esquerdistas buscam transformar o mundo
Jamais conheci um esquerdista que chegasse a s�-lo por etapas, por experi�ncia acumulada e avalia��o ponderada dos fatos. Todos tomam posi��o logo de cara na entrada da adolesc�ncia, antes de saber coisa alguma do mundo, e passam o resto da vida julgando tudo � luz dessa op��o inicial. Nada lhes parece mais normal, portanto, que presumir que as opini�es contr�rias �s suas tenham se originado de escolhas igualmente irracionais, apenas com signo invertido. Acontece que a quase totalidade dos pensadores anticomunistas � constitu�da de indiv�duos que um dia foram comunistas e depois mudaram de id�ia por um lento, dif�cil e doloroso processo de autodesmascaramento. As obras de Arthur Koestler, Irving Kristol, David Horowitz, Whittaker Chambers, Milovan Djilas, Daniel Bell e tantos outros � hoje exclu�das do mercado livreiro � n�o s�o apenas �argumenta��es� em favor de uma �posi��o�: s�o express�es de uma experi�ncia longamente amadurecida no isolamento e na �rdua conquista de si. Cada um desses homens pagou um alto pre�o moral por suas id�ias, enquanto as dos comunistas foram recebidas, prontas e gratuitas, de um ambiente juvenil onde circulavam como frases feitas. � verdade que, para muitos comunistas, sua escolha ideol�gica trouxe prova��es e riscos. Mas justamente isso lhes deu um pretexto edificante para que se dispensassem de questionar as doutrinas �s quais tinham oferecido a vida. Quem, depois de passar por persegui��es, pris�o, tortura, h� de querer reconhecer que sofreu tudo isso por uma mentira? Assim, o hero�smo esquerdista � de ordem apenas f�sica e social, sem profundidade interior: quanto mais o militante tem a coragem de padecer por suas cren�as, mais covardemente foge do risco de se decepcionar com elas. Ademais, seu sofrimento tem sempre o reconforto da solidariedade coletiva, organizada, mundial. Sozinho, no c�rcere, ele tem a certeza de que milh�es lutam a seu lado. Quem haver� de querer, no fundo do po�o, abdicar desse �ltimo consolo? Mas � precisamente esse hero�smo em dose dupla que se encontra nos homens que, ap�s sofrer persegui��o de seus advers�rios pol�ticos, consentiram em suportar, solit�rios, o �dio de seus antigos companheiros. Hero�smo, na verdade, triplo, pois entre a primeira e a segunda prova��o vem o mais dif�cil: a travessia do deserto, a luta para vencer a si mesmo. Por isso os cl�ssicos do anticomunismo t�m aquela tens�o moral, aquele peso das decis�es plenamente respons�veis e aquela high seriousness que faltam por completo �s obras de seus advers�rios. Se as biografias pessoais de Marx, L�nin, Mao, St�lin e Fidel s�o uma galeria de baixezas (envolvem desde rituais satanistas e crueldade para com os familiares at� pedofilia), n�o s�o menos deprimentes os perfis intelectuais de um c�nico imoralista como Brecht (o homem que disse dos acusados no Processo de Moscou: �Se eles s�o inocentes, merecem ser fuzilados precisamente por isso�), de um sabujo profissional como Luk�cs, sempre pronto a mudar de opini�o sob comando, ou de um palha�o verboso como Jean-Paul Sartre, sem falar nas d�zias de vigaristas acad�micos que o famoso experimento Sokal desmascarou definitivamente. H� uma tr�gica leviandade em homens que, incapazes de transformar a si mesmos, se disp�em a �transformar o mundo�. Que mundo pode nascer da� sen�o uma pantomima sangrenta?
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