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O leninismo eterno


Olavo de Carvalho
O Globo, 11 de novembro de 2000

 

Durante anos a imprensa ocidental assegurou que havia um grave conflito entre os governos socialistas da R�ssia e da Alb�nia. A fonte da not�cia eram as r�dios estatais dos dois pa�ses, captadas pelo servi�o secreto americano, que transmitiam pesadas recrimina��es m�tuas entre os d�spotas sovi�ticos e os altivos governantes de uma na��ozinha que se cansara de ser sat�lite. As dissens�es internas, afirmavam os comentaristas, prenunciavam a dissolu��o do monolito sovi�tico, a moderniza��o do regime, a abertura ao Ocidente, o retorno das liberdades civis. Enquanto isso, o interc�mbio diplom�tico e comercial entre R�ssia e Alb�nia continuava normalmente, os representantes de cada lado eram bem recebidos no outro, mas a imprensa de Nova York e Londres explicava que eles estavam apenas tentando "resolver suas diverg�ncias".

Passados 40 anos, ex-agentes da KGB revelaram que as emiss�es da r�dio albanesa, al�m de vir em l�ngua praticamente desconhecida na R�ssia, s� eram ouvidas em Moscou pelos funcion�rios do servi�o secreto, ao passo que as russas nem sequer chegavam at� a Alb�nia, porque n�o havia retransmiss�o pelas torres locais. A troca de insultos tinha sido, enfim, uma emiss�o exclusiva para o p�blico ocidental...

Os habitantes de pa�ses democr�ticos, onde os jornalistas vasculham tudo e a oposi��o revela documentos secretos dos �rg�os de seguran�a para esculhambar com o Governo, dificilmente podem imaginar a facilidade com que um regime totalit�rio, controlando as fontes de informa��o, logra impor, para aqu�m ou al�m de suas fronteiras, uma imagem totalmente falsa do que nele se passa.

De modo mais geral, o movimento socialista, no poder ou fora dele, notabilizou-se pelo talento de mostrar-se tanto mais dividido e debilitado - e por isto mesmo menos ortodoxo e mais aberto a inova��es democr�ticas - justamente nos momentos em que mais estreitamente cerrava fileiras para um esfor�o conjunto em estrat�gias de longo prazo.

Poucos n�o-militantes compreendem o sentido dial�tico do racioc�nio socialista, onde cada decis�o traz em seu bojo o resultado oposto, calculado para germinar em segredo e vir � luz de repente, pronto e realizado, como se surgido do nada, confundindo e paralisando os advers�rios. Pelo menos tr�s vezes o truque obteve sucesso em escala planet�ria, levando o mundo a acreditar que o socialismo havia desistido de sua ortodoxia e de seus planos de expans�o, precisamente quando ele se preparava para ampliar seus dom�nios e exercer sobre eles um controle ainda mais r�gido.

A primeira foi em 1921, quando Lenin abriu a R�ssia aos investimentos estrangeiros. Foi uma onda mundial de al�vio. Capitais acorreram em profus�o, celebrando o fim do pesadelo revolucion�rio. Quando a inje��o acabou de produzir seus efeitos curativos sobre a economia russa, veio a brutal ant�tese dial�tica: a repentina estatiza��o total da ind�stria, dos bancos e da agricultura, a consolida��o do Estado policial.

A segunda foi a dissolu��o do Comintern, em maio de 1943, um aceno de boa vontade aos aliados antinazistas, que o interpretaram como prova de que o comunismo abandonara suas ambi��es revolucion�rias e se transformara em puro progressismo patri�tico. Franklin Roosevelt chegou a assegurar que Stalin n�o era comunista de maneira alguma. O resultado, logo depois, foi a ocupa��o de meia Europa pelos ex�rcitos sovi�ticos e a implanta��o do comunismo na China.

A terceira foi a "desestaliniza��o", em 1956, entre aplausos gerais do Ocidente � cansada ideologia revolucion�ria que generosamente abdicava de si mesma. Resultados: revolu��o cubana e expans�o formid�vel do socialismo na �sia e na �frica.

Por isso mesmo, n�o � nada estranho que, quanto mais a esquerda brasileira proclama seu estado de divis�o, a perda de sua identidade ideol�gica e sua conseq�ente disposi��o de abrir-se � moderniza��o capitalista, mais firme e coesa ela avance rumo � conquista do poder, mais ela consolida seu bra�o armado, seu servi�o de espionagem, sua posi��o de mando na m�dia e seu dom�nio sobre a linguagem, o imagin�rio e as rea��es emocionais das classes cultas.

Ningu�m mais, fora da esquerda, sabe o que � dial�tica ou como funciona o princ�pio leninista do "centralismo democr�tico". Por isso ningu�m entende que uma apar�ncia de anarquia e pluralismo � a melhor e a mais tradicional fachada para a consecu��o de uma estrat�gia unit�ria de longo prazo.

Pela mesma raz�o, todas as an�lises do desempenho eleitoral do PT que li at� agora se dividem em duas esp�cies: metade � falta de informa��o, a outra metade � desinforma��o.

Solidamente protegida da luz pela geral ignor�ncia de seus m�todos, a estrat�gia, no entanto, �s vezes deixa o rabo � mostra. Numa entrevista recente, o sr. Luiz In�cio Lula da Silva, ap�s dar por impl�cito que a meta do PT � o socialismo, rejeitou categoricamente a hip�tese de uma social-democracia, invi�vel, segundo ele, num pa�s t�o pobre (ou que tal lhe parece). Mas um socialismo, se n�o � social-democracia, que raio de coisa h� de ser sen�o o bom e velho leninismo?