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Da ignor�ncia � loucura

Olavo de Carvalho
O Globo, 23 de junho de 2001

 

J� assinalei mil vezes, em cursos e artigos, mas igualmente em v�o em ambos os casos, esse tra�o inconfund�vel do leitor brasileiro atual, sobretudo universit�rio, que � a incapacidade de discernir entre a express�o de um estado emocional e a refer�ncia a um fato percebido. O que quer que um autor diga � interpretado sempre como manifesta��o de seus desejos, gostos, prefer�ncias, �dios e temores, e nunca como descri��o adequada ou inadequada de um dado do mundo objetivo. Nos termos da teoria cl�ssica de Karl B�hler, a linguagem � reduzida � sua fun��o expressiva, com exclus�o da denominativa. Isso configura nitidamente um quadro de analfabetismo funcional.

O que hoje se chama �ensino universit�rio� neste pa�s consiste essencialmente na transmiss�o sistem�tica dessa incompet�ncia �s novas gera��es. Se � verdade que a incapacidade de compreender o que se l� � um sinal de educa��o deficiente, ent�o a quase totalidade da educa��o superior tal como praticada no Brasil deve ser condenada, simplesmente, como propaganda enganosa.

Esse estado de coisas n�o resulta apenas da �m� qualidade�, gen�rica e abstratamente. Ele vem de um aglomerado de influ�ncias culturais bem ativas, constitu�do de marxismo gramsciano, psican�lise, relativismo antropol�gico, nietzscheanismo, desconstrucionismo, mais teoria dos paradigmas cient�ficos de Thomas S. Kuhn. O sincretismo dessas influ�ncias, que hoje constitui a t�pica atmosfera ideol�gica do nosso ambiente universit�rio, tem sobre as intelig�ncias juvenis um efeito embrutecedor e paralisante, agravado pelos cacoetes do vocabul�rio �politicamente correto� que se imp�e como idioma obrigat�rio das discuss�es pretensamente letradas.

Cada uma dessas correntes, considerada individualmente, se caracteriza por ser uma hip�tese limitada e provis�ria, elaborada dentro de categorias que s� se aplicam a classes de objetos muito determinados e fundada numa base emp�rica muito estreita. Mas o efeito conjugado delas, na exclus�o de quaisquer outras influ�ncias culturais de maior envergadura que pudessem relativiz�-las e reduzir cada uma ao tamanho que lhe � pr�prio, � produzir no estudante uma falsa impress�o de universalidade que lhe d� a ilus�o de estar muito bem orientado no horizonte maior da cultura, justamente no instante em que suas perspectivas se comprimem at� � medida do provinciano e do gremial.

Nenhuma dessas correntes, e muito menos a soma delas, tem a universalidade necess�ria para poder constituir a base de uma educa��o superior. Para quem j� viesse do curso secund�rio com essa base, o estudo delas poderia ser �til, � guisa de tempero cr�tico e contrapeso relativizador. O que n�o se pode � admitir uma bagagem cultural constitu�da apenas de contrapesos ou uma alimenta��o constitu�da somente de temperos. � precisamente essa falsa bagagem e esse falso alimento que hoje formam a subst�ncia mesma da educa��o superior no pa�s.

Quando me refiro a base, o que quero dizer � o conhecimento dos dados fundamentais da civiliza��o e a aquisi��o de um quadro de refer�ncias hist�rico-cultural suficientemente amplo. Isto s� se adquire pela absor��o do legado grego, crist�o-medieval, renascentista e moderno, de prefer�ncia encaixado no panorama maior das culturas antigas e orientais.

Na mente que possua essa base, aquelas modas culturais ingressam como acr�scimos de detalhe que podem exercer um efeito vivificante sobre a vis�o do conjunto. Sem base, os detalhes, boiando soltos no vazio, acabam por constituir um �Ersatz� de totalidade, preenchendo com opini�es gen�ricas e frases de efeito o espa�o que deveria estar repleto de conhecimentos positivos. A deformidade intelectual da� resultante faz da mente do estudante brasileiro uma caricatura grotesca da intelig�ncia humana.

Caracterizam-na a completa falta do senso das propor��es, a quase impossibilidade de distinguir entre forma e mat�ria, a �nfase obsessiva em detalhes de ocasi�o, a completa cegueira para as contradi��es mais patentes.

Um exemplo � a transforma��o que o relativismo sofreu ao tornar-se moda nos nossos c�rculos acad�micos. Ele j� n�o � mais aquela precau��o elegante que buscava compensar a unilateralidade das afirma��es mediante o reconhecimento da verdade ao menos parcial das suas contr�rias. � um ceticismo ou negativismo militante, fan�tico, agressivo, irracional, que afirma peremptoriamente a inexist�ncia de quaisquer verdades objetivas e tem um acesso de c�lera sagrada � menor cogita��o de que alguma talvez exista. N�o h� nada mais rid�culo do que um relativista que se apega ao relativismo com f� dogm�tica e rejeita como tenta��o demon�aca a possibilidade de que alguma afirma��o talvez seja menos relativa que as outras.

O efeito desse h�bito sobre a intelig�ncia � devastador. N�o existindo verdades objetivas, a linguagem s� pode ser compreendida como express�o de estados subjetivos -- mas n�o ocorre jamais aos viciados nesse enfoque a id�ia de que tamb�m sua apreens�o dos estados subjetivos alheios n�o poderia, nesse caso, ser uma percep��o objetiva mas somente a proje��o dos seus pr�prios estados subjetivos. O alardeado �pensamento cr�tico�, em tais circunst�ncias, torna-se apenas um tiroteio cego de imputa��es projetivas que se ignoram, at� o ponto de que o �objeto� em discuss�o, reduzido a mero pretexto de afirma��es da vontade, desaparece completamente de vista. A possibilidade de uma �argumenta��o� � a� evidentemente nula, e o �nico fator decisivo que condiciona a vit�ria ou derrota nas discuss�es � a maior ou menor capacidade de impressionar mediante uma �performance� psicol�gica mais exibicionista e mais insana, e por isto mesmo mais de acordo com as expectativas doentias da plat�ia.

O ambiente dessas discuss�es � evidentemente psic�tico, e a aquisi��o desta psicose � hoje considerada n�o apenas um sinal de cultura, mas um requisito indispens�vel para o cidad�o ser aceito como pessoa normal no ambiente universit�rio. A forma��o superior, nessas condi��es, consiste em passar da ignor�ncia natural � inconsci�ncia militante e desta � onipot�ncia cega que culmina na loucura.