O homem-rel�gio
Olavo de Carvalho O Globo, 28 de julho de 2001
Os livros de divulga��o cient�fica para a juventude falam sempre com desprezo do �antropomorfismo� das id�ias antigas acerca do cosmos. Nada mais ing�nuo, parece, do que vislumbrar inten��es humanas � ou divinas � nas plantas, nas pedras, nos ventos e nas gal�xias. Sentado no pin�culo da evolu��o cient�fica, qualquer garoto de escola, baseado na autoridade de livros que nunca leu, ri das gera��es que o antecederam desde o come�o do mundo. Mas o fato � que por tr�s de toda concep��o cient�fica do universo h� sempre um esquema imaginativo subentendido, e enquanto esquema imaginativo da totalidade da natureza o antropomorfismo � infinitamente menos ing�nuo do que todos aqueles que o sucederam desde o Renascimento at� hoje. Descartes e Newton concebiam o universo como um rel�gio. Nenhum �ndio seria cretino o bastante para acreditar numa coisa dessas. Mesmo um indiozinho pequenininho j� sabe que a natureza � astuta e imprevis�vel. A hip�tese de aprision�-la numas quantas f�rmulas repet�veis lhe pareceria puro charlatanismo, e ele n�o precisaria de mais de uns segundos para rejeit�-la in limine . J� a nossa cult�ssima civiliza��o precisou de tr�s s�culos para despertar da ilus�o mecanicista. Precisamos de Planck e Heisenberg para nos provar algo que qualquer indiozinho de 6 anos nos teria contado antes deles. N�o nego que a prova, em si, vale alguma coisa. Mas quantos a conhecem? Kant estava errad�ssimo ao conceber a autonomia de julgamento como a fina flor da civiliza��o moderna. O homo urbanus , na sua esmagadora maioria, acredita em Planck e Heisenberg s� por ouvir dizer: n�o tem a independ�ncia de ju�zo com que o indiozinho acredita em seus pr�prios olhos. O mecanicismo se imp�s porque dava aos homens uma demencial ilus�o de poder. �Saber � prever, prever para poder�, proclamava Comte. Se a realidade era uma m�quina, bastava saber apertar os bot�es certos para obter os resultados desejados. Da� � �f�sica social� e � economia planejada, foi um piscar de olhos. Uns 150 milh�es de seres humanos pereceram v�timas desse experimento cient�fico. E tudo come�ou com um rel�gio. � verdade que a falsa imagem do conjunto, simplificando o racioc�nio, permitiu que certos detalhes fossem calculados com mais precis�o. Descartes conhecia os pormenores da refra��o �ptica bem melhor que o indiozinho. Mas isto n�o tornava menos idiota o seu esquema geral do cosmos, nem menos devastadoras as conseq��ncias de uma ci�ncia de pormenores erguida sobre um esquema imaginativo pueril. Nada do que se diga da import�ncia vital dos esquemas imaginativos no conhecimento ser� exagero. N�o podemos conhecer, pela observa��o cient�fica, a totalidade do real. Mas todos temos dela alguma expectativa que se traduz em imagens. � sobre estas imagens que se constr�i o edif�cio do conhecimento racional. Toda a psicologia, de Arist�teles a Piaget, mostra que a intelig�ncia racional n�o opera diretamente sobre os dados dos sentidos, mas sobre as imagens, os �fantasmas�, diziam os gregos, depositados na mem�ria. A imagina��o � a ponte entre o sens�vel e o intelig�vel. Imaginatio mediatrix , dizia o grande Hugo de S. V�tor: a imagina��o � mediadora. Por isso, todo conhecimento, toda civiliza��o se ergue sobre um fundo imagin�rio. A tremenda estabilidade, a sanidade inabal�vel de tantas culturas primitivas dotadas de nada mais que um m�nimo de saber cient�fico deveu-se justamente � adequa��o entre seus esquemas imaginativos e a realidade da sua experi�ncia vivida. Envoltos em mitos e lendas, esses homens antigos podiam nada saber de quarks e buracos negros, mas tinham um pressentimento certeiro do lugar da exist�ncia humana no cosmos e sabiam traduzi-lo em atos e palavras dotados de sentido. H� infinitamente mais sentido em falar com as plantas do que em imaginar-se engrenagem de um rel�gio. A concep��o antropom�rfica da planta � incomparavelmente mais inteligente e mais digna do que a concep��o relogiom�rfica do homem. Achar que uma planta � uma pessoa pode inibir um homem de matar a planta. Mas se voc� acha que as pessoas s�o rel�gios, nada mais l�gico do que mat�-las porque se recusam a funcionar como rel�gios. Robespierre, Lenin e Hitler nada fizeram sen�o tirar as conseq��ncias das premissas lan�adas por Descartes e Newton. Viktor Frankl dizia isso: se o homem � apenas um produto industrial, n�o h� nada de mais em jogar alguns fora no controle de qualidade. Cada vez mais acho que ele tinha raz�o. Auschwitz e o Gulag n�o s�o propriamente filhos da ci�ncia, mas s�o filhos do esquema imaginativo imbecil e inumano que a ci�ncia moderna criou ad hoc para poder se desenvolver. � altamente duvidoso que mesmo os mais extraordin�rios progressos da t�cnica valham tamanha mutila��o da imagem do mundo, mesmo porque nada prova que a amputa��o fosse estritamente necess�ria, que a ci�ncia que temos, ou mesmo outra melhor, n�o poderia ter-se desenvolvido sem isso. Hoje o mecanicismo est� desmoralizado, morto, esquecido. Mas a imagem medieval do cosmos vivente e dotado de sentido cujo lugar ele usurpou no imagin�rio do homem ocidental e que j� n�o era certamente um puro antropomorfismo, mas uma concep��o muito mais fina e elaborada -� continua sepultada e proibida. E as ondas de ocultismo e bruxaria, que de tempos em tempos inundam o mundo tecnol�gico, n�o s�o sen�o o protesto neur�tico de um impulso leg�timo que, reprimido, ressurge sob a forma de doen�a. A imagina��o do homem ocidental n�o foi sufocada pelo puro materialismo, mas por uma parceria de materialismo e ocultismo. Quando Edmund Husserl, no come�o do s�culo XX, advertiu para uma crise de racionalidade nas ci�ncias, ele tocou no problema decisivo da nossa civiliza��o: at� que ponto um saber cient�fico que se erigiu sobre um esquema imaginativo falso e mutilador pode conservar a dignidade de ci�ncia em vez de tornar-se uma mitologia de segunda m�o?
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