Honra ao m�rito
Olavo de Carvalho
De uma pol�mica que o dr. Oswaldo Porchat Pereira teve comigo, e da qual saiu com o rabo entre as pernas ap�s uma v� tentativa de me assustar com uns argumentos supremamente calhordas, conclu� que ele era um fracote. Da leitura de um de seus escritos filos�ficos de maturidade, conclu� que era um idiota. Lendo, agora, sua tese de doutoramento, retirada do ba� pela Editora da Unesp, descubro, com grata satisfa��o, que 33 anos atr�s ele n�o era nada disso: era um estudioso s�rio, capaz de trabalho intelectual pesado, honesto e at� corajoso. Tendo divulgado as duas primeiras conclus�es, vejo-me na estrita obriga��o de publicar a terceira, ao menos para que se veja que o homem n�o � ruim por natureza, mas ficou assim por for�a de tr�s d�cadas e tanto de servi�o p�blico na USP, uma experi�ncia capaz de corromper at� os santos e da qual eu, que nunca passei por ela, n�o posso jurar que me sairia melhor. Ci�ncia e Dial�tica em Arist�teles permaneceu in�dito e agora vem a p�blico por m�rito de d. Marilena Chau�, a qual, por distra��o ou mal�cia, inaugurou com o livro uma cole��o � qual deu o mesmo nome daquela que h� dois anos dirijo na Editora Record: Biblioteca de Filosofia. Dona Marilena � mesmo uma pessoa estranha. Anos atr�s (corrijam-me, por favor, se eu estiver errado), acusada por Jos� Guilherme Merquior de plagiar uns escritos de Claude Leffort, respondeu que tivera um caso amoroso com o autor plagiado, sugerindo que p�ginas inteiras da obra dele teriam sido transmitidas � sua pessoa por meios que n�o s�o da nossa conta. Mas ela n�o h� de ser acusada de ter por mim an�loga simpatia. A palavra mais doce que j� disse a meu respeito foi "cafajeste", recebendo uma resposta que, embora publicada, n�o ouso repetir, de vez que j� passou h� tempos a emo��o do insulto que me fez proferi-la. Lembro o epis�dio apenas para atestar que d. Marilena n�o tem comigo nenhuma intimidade af�vel que justificaria, como no caso Leffort, uma transmiss�o telep�tica. Permanece, pois, o mist�rio. N�o podendo resolv�-lo, voltemos ao dr. Porchat. Para avaliar a import�ncia do seu trabalho, � preciso estar ciente de que ele, no seu momento, respondeu eficazmente a uma pol�mica de meio s�culo que se travava em torno da continuidade ou descontinuidade da id�ia de ci�ncia em Arist�teles, e que essa discuss�o n�o tinha somente interesse hist�rico, dada a inspira��o que muitos fil�sofos da ci�ncia e cientistas de of�cio, especialmente bi�logos, estavam buscando no Estagirita para revigorar o senso da unidade org�nica do saber. A disputa nasceu com Werner Jaeger (depois autor da celebrad�ssima Paid�ia), quando, aplicando a Arist�teles o m�todo biogr�fico-gen�tico que t�o bem funciona com autores mais recentes, concluiu que a filosofia do mestre tinha passado por substanciais muta��es e nela n�o se encontrava mais unidade do que aquela que se pode vislumbrar nas express�es de qualquer alma humana, que se transforma no curso dos tempos e se esquece de si. Embora rejeitando em ess�ncia o m�todo de Jaeger, o grosso do "establishment" acad�mico subscreveu a id�ia de que haveria em Arist�teles, e sobretudo em sua concep��o do saber cient�fico, v�rios come�os e recome�os, n�o sobrando no fim um sistema, por�m ao menos dois, num conflito sem solu��o. Opondo-se valentemente a essa respeit�vel maioria, Porchat matou a quest�o pelo m�todo que aprendera de Victor Goldschmidt e Martial Gu�roult: a reconstitui��o meticulosa, mediante leitura anal�tica, da "ordem das raz�es" que estruturam uma filosofia. Da� surge brilhantemente restaurada a unidade da teoria aristot�lica da ci�ncia, acima de qualquer d�vida razo�vel. No curso de minhas investiga��es sobre a concep��o do discurso em Arist�teles, topei, evidentemente, com a mesma quest�o. Cheguei � mesma resposta, sem ter o tempo ou os meios de prov�-la, e passei adiante, pois o objeto da minha investiga��o era outro. Mas sempre conservei algumas d�vidas quanto a esse ponto em particular, sabendo que um dia eu ou algu�m teria de voltar l� para tir�-lo a limpo. Diante da constata��o de que Porchat, numa tese in�dita, j� tinha matado o problema, s� posso exclamar: bravo! Evidentemente, se eu tivesse lido a tese enquanto trabalhava no meu Arist�teles em Nova Perspectiva, isto em nada teria mudado minha conclus�o global, mas certamente eu a teria afirmado com mais vigor e certeza, pois a unidade da l�gica cient�fica � um argumento decisivo em favor da unidade da concep��o aristot�lica do discurso em geral, que � o que ali procuro defender. S� lamento que um sujeito t�o capaz fosse sepultar seus talentos no cemit�rio uspiano. D� para entender por que, come�ando com Arist�teles, ele terminou no pirronismo, a mais demission�ria das filosofias. Era pedir demiss�o do emprego -- ou da filosofia.
|