Os gurus do crime
Olavo de Carvalho
"Intelectuais iluminados n�o s�o
Toda a ci�ncia social do mundo, a marxista inclusa, ensina que nunca as condi��es materiais e econ�micas determinam diretamente a conduta dos homens, mas que o fazem sempre e somente atrav�s da interpreta��o que estes lhes d�o, isto �, atrav�s dos fatores ideol�gicos, culturais, morais e psicol�gicos envolvidos no processo. Um exemplo tornar� isso mais claro. Toda hora aparecem na TV e nos jornais pessoas cult�ssimas, sabedoras, iluminadas, as quais nos asseguram, com ar de certeza infal�vel, que a mis�ria produz a criminalidade. O sujeito trafica, assalta, mata e estupra porque � um exclu�do, um miser�vel, um favelado. � o que dizem. Mas - digo eu e dizem os fatos - se o exclu�do, o miser�vel, o favelado � tamb�m evang�lico, ele n�o trafica, nem assalta, nem mata, nem estupra. Se fazia essas coisas antes da convers�o, cessa de faz�-las imediatamente ao converter-se. Qual a diferen�a? N�o � econ�mica, decerto. � cultural, � moral, � psicol�gica e espiritual. O sujeito, ao converter-se, sofre ainda o impacto cruel da mis�ria, da exclus�o, do compressivo estreitamento de suas possibilidades de a��o na sociedade. Apenas, deixou de acrescentar a esses males o mal ainda maior da pr�tica do crime. Ele ainda est� na mesma situa��o, materialmente falando. Apenas, passou a interpret�-la segundo outros valores, outros s�mbolos, outros crit�rios. Isso faz, no pobre como no rico, toda a diferen�a entre o criminoso e o homem de bem. A experi�ncia de milhares de evangelizadores e evangelizados, inclusive dentro dos pres�dios, comprova que, na produ��o como na supress�o da criminalidade, o peso dos fatores morais e culturais � infinitamente mais decisivo do que a situa��o material em si. Eis o motivo pelo qual, nas cadeias, a ger�ncia do crime odeia aqueles a quem pejorativamente chama "os b�blias". Eis o motivo pelo qual, na Col�mbia, as Farc j� mataram 70 pastores evang�licos e, pelo seu porta-voz Mono Jojoy, anunciaram que v�o matar todos os outros. Bastam essas observa��es para nos fazer perceber que a parte mais aud�vel e vistosa da discuss�o do problema da criminalidade no Brasil � pura fraude. Essa discuss�o caracteriza-se, da maneira mais geral e patente, pelo esfor�o de explicar tudo diretamente pelas condi��es materiais, omitindo os demais fatores mencionados. E � assim por um motivo muito simples: esses fatores n�o s�o produzidos pela situa��o material mesma, como emana��o natural e espont�nea, mas s�o introduzidos nela desde fora e desde cima, pela a��o dos criadores de cultura, dos "intelectuais" (no sentido gramsciano e el�stico do termo). Ora, quem s�o os c�rebros iluminados que, nas horas de crise e agonia, aparecem na TV e nos jornais para receitar solu��es? S�o os pr�prios intelectuais militantes. Quando esses homens, ao analisar uma situa��o catastr�fica, omitem o elemento cultural, est�o ocultando a contribui��o que eles pr�prios deram � produ��o da cat�strofe. Se fossem honestos, jamais fariam isso. A primeira obriga��o do int�rprete da sociedade � discernir sua pr�pria posi��o, sua pr�pria atua��o na cena descrita, para neutralizar o quanto poss�vel a distor��o subjetiva ou interesseira. Ora, no Brasil o cuidado primordial dos opinadores � fingir que est�o fora do quadro, � lan�ar tudo � conta de causas externas justamente para que ningu�m perceba que eles pr�prios s�o o item n�mero um do rol de causas. O debate em torno da criminalidade tem sido uma gigantesca m�quina de auto-oculta��o dos culpados. H� cinq�enta anos a cultura que produzem, interpretando posti�amente o banditismo como express�o direta e leg�tima de uma justa revolta contra a sociedade injusta, atua como poderoso mecanismo de chantagem emocional que desarma moralmente o aparelho repressivo, ao mesmo tempo que infunde nos delinq�entes uma ilimitada autoconfian�a e lhes fornece o discurso de autolegitima��o ideol�gica para a abdica��o dos �ltimos escr�pulos, para a passagem da viol�ncia ca�tica e imediatista � viol�ncia organizada, politizada, que se viu na rebeli�o simult�nea de 29 pres�dios paulistas. Alguns desses gurus do crime v�o at� al�m disso, ensinando aos delinq�entes as formas de organiza��o revolucion�ria que aprenderam em seus partidos ou em Cuba. Depois aparecem ante as c�meras, fingindo desinteresse generoso e superior isen��o cient�fica. Todos esses fatos s�o empiricamente verific�veis, e a conclus�o a que levam n�o tem nenhum meio racional de ser impugnada: os acontecimentos sangrentos da semana passada foram - como o ser�o os pr�ximos do mesmo teor- o efeito l�gico e inevit�vel de uma a��o coerente, cont�nua, pertinaz, empreendida pela intelectualidade ativista na inten��o de fomentar a revolta e transformar o Brasil primeiro numa Col�mbia, depois numa Cuba. As p�ssimas condi��es do sistema carcer�rio, as prodigiosas dificuldades econ�micas da popula��o, as frustra��es de milh�es de exclu�dos, as injusti�as e as maldades do sistema n�o produziram a rebeli�o organizada e politizada dos detentos: o que a produziu foi a cren�a, artificialmente inculcada nos delinq�entes pelos intelectuais, de que essas circunst�ncias deprimentes justificam que detentos se organizem politicamente para a a��o violenta. O que a produziu n�o foi nenhum desejo sincero de suprimir ou remediar aqueles males, todos eles remedi�veis, todos eles suprim�veis, mas sim o de lhes acrescentar o mal irremedi�vel e irrevers�vel por excel�ncia: a organiza��o revolucion�ria da brutalidade coletiva. S�o culpados da rebeli�o carcer�ria todos os que, h� cinco d�cadas, a desejam e a fomentam com seus discursos ideol�gicos, seja por decis�o volunt�ria ou por cumplicidade sonsa. S�o culpados todos os que, rejeitando nominalmente esses discursos, se abst�m de combat�-los sob a desculpa infame de que se tornaram inofensivos ap�s a queda do Muro de Berlim. S�o culpados todos os que, sabendo que doses letais de �dio revolucion�rio s�o diariamente injetadas nas cabe�as de milh�es de crian�as brasileiras, nada fazem para desmascarar essa pedagogia do abismo. S�o culpados todos os que, por comodismo, por paternalismo, por medo de levar na testa r�tulos pejorativos, por desejo abjeto de fazer bonito ante o esquerdismo chique, n�o movem um dedo para impedir que a cultura e a psique da nossa gente seja infectada com os germes dos mais baixos instintos de vingan�a pol�tica, adornados com r�tulos edificantes como se fossem a express�o mais alta da moralidade humana.
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