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Gn�sticos e revolucion�rios

Olavo de Carvalho
O Globo, 21 de julho de 2001

 

No come�o do s�culo XIX, muitos historiadores das religi�es estavam conscientes dos elos de continuidade entre a heresia gn�stica dos primeiros s�culos da Era Crist� e as filosofias iluministas e rom�nticas. Por uma triste ironia, justamente no momento em que essas filosofias, logo a seguir, se transmutaram em movimentos ideol�gicos de massas, a consci�ncia daqueles elos desapareceu do horizonte intelectual e o fen�meno totalit�rio resultante desses movimentos n�o p�de ser adequadamente compreendido.

Coube ao fil�sofo alem�o Eric Voegelin (1901-1985) o m�rito de haver n�o somente redescoberto a inspira��o gn�stica das ideologias totalit�rias, mas criado os instrumentos intelectuais para enquadr�-la numa compreens�o mais geral da hist�ria.

Malgrado a alucinante variedade dos movimentos gn�sticos e as diferen�as entre suas formula��es te�ricas, h� no fundo de todos eles a unidade de uma cosmovis�o, ou no m�nimo de um sentimento c�smico comum: a viv�ncia do universo como lugar hostil e do homem como criatura jogada no meio de uma m�quina absurda e incompreens�vel. Em �ltima inst�ncia, � a rejei��o do julgamento que Deus fez da Sua pr�pria cria��o no �ltimo dia do G�nesis, quando Ele olhou o cosmos e �viu que era bom�. Para os gn�sticos, a ordem c�smica � essencialmente m� e ao homem n�o resta sen�o o caminho da fuga ou da revolta. Ao longo dos oito volumes de sua �History of political ideas� e dos cinco da obra inacabada �Order and History� (ambas publicadas pela University of Missouri Press), Voegelin demonstrou que dessa vis�o inicial emergiram os desenvolvimentos mais variados, desde a total rejei��o da vida mediante o ascetismo � outrance dos c�taros, passando pelo sonho dos alquimistas elisabetanos de �corrigir a natureza�, at� as utopias pol�ticas modernas da Revolu��o Francesa e dos movimentos comunista, nazista e fascista, com suas ambi��es promet�icas de sociedade planejada, Estado onipotente e felicidade coletiva a ser alcan�ada por meio de um mortic�nio redentor.

O gnosticismo, assim compreendido, n�o � s� uma revolta contra o catolicismo em particular, mas contra toda vis�o tradicional da ordem social como express�o da ordem divina da alma e do cosmos. A transforma��o de uma corrente esot�rica em poderoso movimento de massas que dominou a hist�ria dos dois �ltimos s�culos observou-se principalmente no Ocidente, em raz�o das guerras religiosas que, a partir do s�culo XVI, romperam a unidade da sociedade crist� e eliminaram a religi�o como poder p�blico, instituindo o moderno Estado leigo que, erigido sobre um v�cuo espiritual, acabou por se revelar impotente para resistir � invas�o dos movimentos gn�sticos de massa. Refluindo para o Oriente, esses movimentos devastaram ali as religi�es tradicionais (ortodoxa, judaica, budista, confuciana e isl�mica, principalmente), manifestando da maneira mais patente a sua natureza universalmente antiespiritual e n�o apenas anticat�lica em especial.

Mas � inevit�vel que toda grande descoberta no reino das id�ias venha seguida de perto por alguma vers�o par�dica que ao mesmo tempo a imita e inverte o seu sentido.

Assim, n�o demoraram a aparecer, no ambiente cat�lico de extrema-direita, doutrin�rios que, explorando ind�cios fortuitos de semelhan�as entre algumas id�ias gn�sticas e elementos de doutrina judaica, isl�mica, budista, etc., apresentaram uma nova vers�o da revolu��o gn�stica. Esta j� n�o seria uma aberra��o voltada contra toda a vis�o normal e tradicional, mas a alian�a dos gnosticismos do Oriente e do Ocidente numa conspira��o universal contra a Igreja Cat�lica.

Nunca ocorreu a esses g�nios da parasitagem intelectual perguntar-se por que, na guerra de todos contra a Igreja Cat�lica, esta foi, das religi�es tradicionais, a que menos v�timas deu � sanha dos revolucion�rios gn�sticos. Mesmo diante dos horrores da persegui��o sofrida na Fran�a, no M�xico, na Espanha, na Pol�nia, em Cuba; mesmo diante da evid�ncia de tantos �Catholic martyrs of the twentieth century� meticulosamente coletada pelo historiador Robert Royal (New York, Crossroad, 2000), n�o h� como nivelar, em n�meros, o mortic�nio dos cat�licos ao dos ortodoxos, judeus, mu�ulmanos e budistas sacrificados na R�ssia, na Alemanha, na China, no Tibete e n�o sei mais onde pela m�quina genocida da revolu��o gn�stica. A religi�o chinesa, em particular, pode-se considerar hoje virtualmente expulsa da hist�ria pela brutal doutrina��o materialista que bloqueou o acesso de mais de um bilh�o de seres humanos �s no��es religiosas e metaf�sicas mais elementares.

Ora, essas religi�es n�o-cat�licas s�o precisamente aquelas que, segundo a caricatura extremista da teoria de Voegelin, constituiriam, mediante uma alian�a com o materialismo militante, o outro bra�o da revolu��o gn�stica voltada contra a Igreja Cat�lica. Se elas fossem realmente isso, ent�o restaria explicar por que, em vez de coordenar-se num assalto conjunto a Roma, elas escolheram primeiro destruir-se a si mesmas.

N�o, a Igreja Cat�lica n�o � o �nico, nem, hoje em dia, o principal alvo do ataque gn�stico. Ela sofreu muito, est� muito dividida e corro�da pelos vermes gn�sticos da �teologia da liberta��o�. Mas ela � � ainda � uma s�lida fortaleza contra a destrui��o do esp�rito tradicional e da vis�o normal do homem no cosmos. T�o importante � o seu papel estrat�gico, que mesmo ocasionais hesita��es da sua parte bastaram para dar ao inimigo a oportunidade de avan�os e conquistas formid�veis, como se viu na ascens�o do nazismo, que ela poderia ter impedido se agisse em tempo, ou nos espetaculares sucessos que o comunismo obteve nas pr�prias fileiras cat�licas durante as d�cadas de 60 e 70, na esteira das confus�es paralisantes que se seguiram ao Conc�lio Vaticano II. Jogar a Igreja contra as demais religi�es massacradas pela f�ria das ideologias totalit�rias � fazer causa comum com o inimigo de toda religi�o e de toda espiritualidade. � ressuscitar em escala universal os conflitos inter-religiosos que, no come�o dos tempos modernos, s� puderam ser apaziguados mediante o advento do Estado leigo que abriu as portas � invas�o das ideologias gn�sticas. Muitos podem colaborar com isso por inoc�ncia e boa-f�, pois o amor sincero � Igreja nem sempre vem acompanhado de uma vis�o abrangente e adequada da hist�ria. Mas outros sabem perfeitamente bem para quem trabalham e aonde querem chegar. Quando ouvir um desses, caro leitor, n�o se deixe iludir por pretextos piedosos e por uma linguagem de sacristia: ele � a voz da velha revolta gn�stica que, disfar�ada de devo��o crist�, tenta dividir para reinar.