Fraude e inconsci�ncia
Olavo de Carvalho
Que essa proposta fosse absurda e monstruosa em si, �cela va sans dire�. Mas o fato � que essa mesma caracter�stica dava ao socialismo uma extraordin�ria superioridade na concorr�ncia com as demais doutrinas. Primeiro, porque nenhuma delas poderia jamais organizar-se, como ele, de maneira disciplinada para produzir um discurso coerente e unit�rio sobre todos os aspectos e fen�menos da vida. Nenhuma doutrina ou corrente de opini�o pretendeu jamais abarcar um campo t�o vasto, nem muito menos subjug�-lo de maneira t�o rasa e imediata aos fins pr�ticos de uma ambi��o pol�tica. Segundo, porque essa peculiaridade tornava o socialismo a doutrina de mais f�cil e imediata aceita��o: � incomparavelmente mais f�cil envolver as pessoas numa fantasia psic�tica auto-reprodutora do que conduzi-las ao longo de uma penosa e lenta caminhada por entre as ambig�idades e contradi��es da vida. A no��o mesma de �contradi��o�, no socialismo marxista, sofria uma simplifica��o redutiva que a tornava facilmente manej�vel para fins de propaganda pol�tica. Terceiro, porque, nessas condi��es, o socialismo atuava sobre o imagin�rio coletivo como for�a unificada, enquanto quaisquer outras doutrinas se esfarelavam e se despersonalizavam numa poeira confusa de diferen�as dificilmente abarc�veis pelo olhar do cidad�o comum. (E quando o socialismo p�s-URSS abandonou at� suas pretens�es de formula��o doutrinal expl�cita, reduzindo-se a um mero sistema de estimula��es emocionais, a coisa tornou-se ainda mais f�cil.)
Assim, face ao assalto maci�o das hordas socialistas, os advers�rios, dispersos e desorganizados por defini��o, n�o podiam sen�o recorrer a in�teis apelos � raz�o e ao bom senso, cujo exerc�cio pelo p�blico se tornava imposs�vel gra�as ao tom de passionalismo denuncista e belicoso que o pr�prio lance inicial dado pelos socialistas imprimia a toda e qualquer disputa intelectual. A �nica tentativa de opor ao bloco socialista uma resist�ncia unit�ria e maci�a n�o veio de seus inimigos, os capitalistas liberais, mas de um concorrente emergido das pr�prias fileiras socialistas: o nazifascismo. Este tinha tanta �personalidade�, tanta visibilidade e tanta brutalidade quanto o socialismo, e era t�o pretensioso quanto ele em sua ambi��o de tudo abarcar -- da gram�tica � medicina -- e tudo tornar instrumento da luta. Mas, como rea��o improvisada que foi, ficou muito abaixo do socialismo, seja em volume de produ��es, seja em n�vel de elabora��o intelectual. Macaquea��o canhestra, terminou oferecendo ao advers�rio a ajuda mais inesperada e mais decisiva: tornou poss�vel a dupla fraude hermen�utica que se tornou a mais poderosa arma do arsenal ret�rico socialista. Primeiro, tratou-se de converter o fascismo -- mistura de socialismo e nacionalismo xen�fobo -- em �doutrina capitalista burguesa� (analisei esse truque no artigo �Coelhos fantasmas� de 8 set. 2001). Feito isto, tornava-se f�cil tomar qualquer doutrina j� previamente diagnosticada como �ideologia burguesa� (pelos meios acima descritos) e, num passe de m�gica, colar-lhe por acr�scimo o r�tulo de fascista. Descobrir fascismo por tr�s das id�ias mais d�spares e heterog�neas tornou-se, desde ent�o, o meio b�sico de an�lise no enfoque socialista do que quer que seja -- praticamente o �nico instrumento intelectual em uso na totalidade da literatura esquerdista, na produ��o acad�mica esquerdista, no jornalismo esquerdista. E, da maneira mais clara poss�vel, esse meio e instrumento consiste em uma s� coisa: fraude.
Transformar em fraude a totalidade dos produtos da intelig�ncia
humana e faz�-lo por meio de um esquema interpretativo simples,
autom�tico, repet�vel como um cacoete, autoproliferante como um
v�rus de computador, tal foi a grande, a rigor a �nica realiza��o
intelectual do socialismo.
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