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O figurino de d. Marta

Olavo de Carvalho
Jornal da Tarde, 12 de outubro de 2000

 

At� a d�cada de 30, a imagem do comunismo era a do prolet�rio grosseir�o, de unhas sujas e macac�o surrado. Sua linguagem, a do insulto direto. A coisa mais banal, nas assembl�ias do Partido, era o orador ser interrompido por observa��es do tipo: "O companheiro � um f. da p."

Nessa �poca, por�m, o governo sovi�tico percebeu que o socialismo era economicamente invi�vel, que a �nica maneira de salv�-lo era parasitar a prosperidade capitalista dos outros pa�ses.

Se a raz�o prevalecesse, o regime seria declarado morto nesse mesmo instante. Mas n�o � pr�prio do orgulho promet�ico dar o bra�o a torcer. A obstina��o no imposs�vel levou � mais extraordin�ria das decis�es: insuflar no falecido uma vida posti�a. Morto como proposta econ�mica, o socialismo subsistiria como farsa consciente, sustentada pela ajuda capitalista.

Para esse fim, era preciso trocar de p�blico: o partido dos prolet�rios tinha de se tornar o partido dos milion�rios. De ideologia b�rbara de maltrapilhos, o comunismo iria converter-se em moda elegante.

O �nico meio para isso era um ataque simult�neo em duas frentes. De um lado era preciso ficar bonito, aparecer, ganhar as telas e as manchetes, brilhar.

De outro, era preciso infiltrar-se discretamente nas altas rodas, controlar personagens importantes por meio do envolvimento e da chantagem. A ortodoxia dos servi�os de intelig�ncia, at� ent�o, considerava imposs�vel articular publicidade e opera��es camufladas. A proposta era t�o improv�vel, que sua realiza��o deve ser considerada a mais sublime vit�ria alcan�ada pelo esp�rito da mentira desde aquele epis�dio, jamais totalmente elucidado, do Jardim do �den.

A opera��o, ordenada por Stalin e planejada por Karl Radek, foi executada por Willi M�nzenberg, um g�nio da publicidade, e por Otto Katz, um g�nio da secretude e da sedu��o pessoal. A hist�ria � contada em detalhes por Stephen Koch em Double Lives: Spies and Writers in the Secret Soviet War of Ideas Against the West (New York, The Free Press, 1994).

O comunismo chique deu o tom da d�cada de 30 e, atrav�s de escritores monitorados, como Ernest Hemingway, Dorothy Parker, John dos Passos, Sinclair Lewis, deixou marcas duradouras no imagin�rio do s�culo 20. N�o � de espantar que, ap�s a queda da URSS, esse estilo, j� desprovido de sua fun��o primeira de sustentar o insustent�vel, mas ainda �til para insuflar esperan�a em comunistas desamparados, subsistisse como clone em terras do Terceiro Mundo, onde tudo chega com atraso e as pessoas s�o propensas � macaquea��o residual de modas que j� ningu�m sabe para que foram inventadas.

Setenta anos ap�s o desembarque do comunismo chique em Nova York, seu primeiro grande sucesso brasileiro s� agora se manifesta, sob a forma de d. Marta Suplicy. O padr�o do seu "glamour" - o perfeito oposto complementar dos encantos populistas da carioca Benedita da Silva - corresponde, item por item, ao modelito Katz-M�nzenberg, hoje pe�a de museu hist�rico na Europa e na Am�rica do Norte, mas, entre n�s, ainda capaz de exercer, sobre rica�os incultos e caipiras, o mesmo embriagante feiti�o das damas stalinistas dos anos 30.

Dona Marta tem apenas uma diferen�a, explicada pela mudan�a geral da estrat�gia revolucion�ria desde os anos 60, quando um pacto assinado entre o Vaticano e o governo de Moscou encerrou um s�culo de conflito ideol�gico, colocando a Igreja a servi�o do comunismo e produzindo uma epidemia mundial de Boffs & Bettos. Sim, d. Marta �, no seu pr�prio discurso, uma cat�lica.

Isto elimina um problema, mas cria outro, porque d. Marta quer ser, ao mesmo tempo, a voz e for�a em prol do aux�lio estatal a condutas que a B�blia qualifica de abomina��es e satanismos.

O figurino requer, pois, alguns ajustes. Um deles apareceu como que por milagre, na v�spera das elei��es, com a denomina��o de "Cat�licas pelo Direito de Decidir". Decidir, no caso, � decidir a morte dos outros. Uma s�bita campanha milion�ria, sob a forma de congressos, panfletos e pain�is eletr�nicos, apregoa que, para evitar que 6 mil mulheres por ano morram em abortos clandestinos, a solu��o mais cat�lica � autorizar oficialmente o assassinato de uns quantos milh�es de beb�s. Coisa pouca, em que Deus n�o vai nem reparar.

Um toque original da coisa � que o sincronismo das duas campanhas - para colocar d. Marta na Prefeitura e tirar os beb�s dos ventres de suas m�es - pode ser explicado como coincid�ncia providencial, eventualmente de origem divina. Nem Katz e M�nzenberg teriam pensado nisso.