Sapientiam Autem Non Vincit Malitia - Foto da águia: Donald Mathis Mande um e-mail para o Olavo Links Textos Informações Página principal

 

Dica para os esquerdistas

Olavo de Carvalho
Jornal da Tarde, 13 de abril de 2001

 

Se voc�s querem "superar o capitalismo", a primeira coisa que t�m a fazer � tirar da cabe�a a id�ia de socialismo. O socialismo n�o apenas � incapaz de superar o capitalismo, como na verdade � apenas uma sombra dele, sem vida pr�pria.

O capitalismo s� ser� superado quando a economia, que ele transformou em centro da exist�ncia, j� n�o for mais aceita como princ�pio causal da Hist�ria, isto �, quando o �ltimo marxista foi enforcado nas tripas do �ltimo "homo oeconomicus".

A supera��o do capitalismo n�o pode consistir na destrui��o da economia de mercado, pela simples raz�o de que o mercado n�o � uma ideologia, um regime, uma lei que um governante baixou e outro possa revogar, mas � uma dimens�o da exist�ncia humana. Algum tipo de economia de mercado sempre existiu e, mesmo no mais burocratizado dos socialismos, continuou a existir. Suprimir a economia de mercado � t�o invi�vel quanto proibir as rela��es sexuais. O que distinguiu o capitalismo moderno, surgido nos Pa�ses Baixos na �poca da Reforma, foi um conjunto de condi��es culturais, morais e pol�ticas que, na aus�ncia de for�as pol�ticas reguladoras da vida social, permitiram que o pr�prio mercado assumisse o papel de regulador. Mas n�o de regulador autocr�tico. Os principais fatores daquele conjunto eram a homogeneidade dos valores morais vigentes (crist�os e judaicos) e a inexist�ncia de um poder central coercitivo: o acordo interior, na aus�ncia de coer��o externa. Tais foram as bases �ticas que, como bem viu Adam Smith, fundamentavam a economia de mercado sem que esta, por si, pudesse cri�-las. Foi a presen�a dessas condi��es que favoreceu o desenvolvimento do capitalismo nos pa�ses protestantes e o inibiu nos pa�ses cat�licos, de forte autoridade central.

Por isso � absurdo considerar o capitalismo uma "ideologia", uma racionaliza��o de anseios pol�ticos. O capitalismo surgiu como realidade operante muito antes de que algu�m o formulasse como ideologia. As posteriores "ideologias" capitalistas jamais conseguiram dar conta da rica complexidade do capitalismo e nem mesmo explicar suficientemente sua efic�cia.

Mas nessa origem aparecia j� uma contradi��o fundamental. � que n�o s� a f�rmula econ�mica surgida espontaneamente daquela combina��o de fatores culturais subsistiu longamente ap�s a dissolu��o dela, mas tamb�m seu sucesso fez com que fosse exportada para regi�es onde combina��o similar nunca existiu. Pois bem, onde o capitalismo se instalou sem essa base �tica, ele teve de improvisar uma - e, a�, a pura "ideologia" capitalista, racionaliza��o esquem�tica, fez �s vezes do fundamento �tico faltante. Isto n�o podia dar certo. Da� o sentido de coisa imposta, revolucion�ria e autorit�ria, que a moderniza��o capitalista adquiriu em tantos pa�ses, inclusive o Brasil, onde essa contradi��o se radicalizou ao m�ximo no regime militar, t�o liberal nos seus pretextos ideol�gicos quanto estatista, centralizador e prepotente nas suas a��es.

Ora, o ponto em comum entre "ideologia liberal-capitalista" e marxismo � o vi�s economicista. O primeiro parte de um recorte fenom�nico abstrato - a conduta econ�mica racional - e o adota, arbitrariamente, como modelo explicativo e norma corretiva de toda a vida social. O segundo n�o faz sen�o "colocar de cabe�a para baixo" esse modelo, atribuindo a conduta econ�mica racional j� n�o ao "homo oeconomicus" individual e sim ao Estado socialista, que � ainda mais abstrato, hipot�tico e artificial do que ele.

Da� a simbiose doentia de ideologia liberal e de socialismo onde quer que as aut�nticas bases culturais do capitalismo falhem. Mas estas bases falham cada vez mais num mundo onde a religi�o recua e o poder pol�tico se expande.

Por isto o capitalismo se descaracteriza a olhos vistos, ficando cada vez mais parecido com o socialismo, ao mesmo tempo que o socialismo, fracassado enquanto f�rmula econ�mica, ganha uma sobrevida posti�a na forma de mitologia cultural do capitalismo e Ersatz de �tica religiosa. Por isso, tamb�m, ser� imposs�vel irmos "al�m do capitalismo", mesmo em sonhos, enquanto nossa imagina��o estiver presa a essa mitologia.

"Superar o capitalismo" � retirar a economia do topo da vida social, submetendo-a a valores supra-econ�micos. Mas isso �, no mesmo ato, abdicar do socialismo. O p�s-capitalismo ainda n�o existe nem em teoria. Mas, quando existir, ser� menos parecido com o socialismo do que com o capitalismo origin�rio, onde a lei de Deus era mais importante do que o progresso econ�mico e por isto mesmo o progresso econ�mico era uma b�n��o e n�o uma maldi��o.