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Obrigado, dona Cec�lia

Olavo de Carvalho

 

Dona Cec�lia Coimbra, voltando � carga em O Globo de 20 de janeiro, queixa-se de que respondi a ela e a M�rcio Moreira Alves como indiv�duos, �ignorando e retirando todo o conte�do grupal/coletivo de uma determinada luta�.

Ora, dona Cec�lia! Se eu dissesse que a senhora, o sr. Gilberto Molina, o M�rcio e o tal de Betto, ao me atacar, agiam como grupo organizado, voc�s com a maior facilidade me tachariam de paran�ico. Agora, que a senhora confessou, n�o corro mais esse risco.

O que se passa entre os esquerdistas e eu desde h� alguns anos nada tem, realmente, de uma livre discuss�o entre indiv�duos. � uma a��o coletiva de organiza��es poderosas, ricas, tentaculares, que, atrav�s de seus agentes na imprensa, tentam destruir um sujeito inconveniente. Voc�s t�m tempo, recursos, arquivos, contatos internacionais, funcion�rios, computadores em rede, todo um arsenal � disposi��o para sustentar indefinidamente uma guerra que, para cada um de voc�s, custa muito pouco. Produzir cal�nias e intrigas em escala industrial, nessa base, � a coisa mais f�cil. O alvo solit�rio, tendo de responder a tudo nos intervalos da luta pela vida, desleixando fam�lia, estudos e interesses particulares, acabar� por tombar, exausto, ou por desistir. Pelo menos � com isso que voc�s contam. De fato, diariamente a pregui�a me aconselha a desistir. Discutir com almas deformadas, que um longo treinamento ideol�gico tornou insens�veis � distin��o entre verdade e falsidade, � t�o in�til quanto tentar ensinar grego cl�ssico a uma manada de porcos-espinhos. No entanto, algo me diz que, se eu desistisse, os porcos-espinhos continuariam porcos-espinhos, mas eu j� n�o seria eu mesmo. No terceiro dia de sil�ncio, j� come�ariam a me brotar os espinhos nas costas. Assim, pois, continuo.

A despropor��o de for�as nessa disputa evidencia t�o bem a covardia e a perf�dia de um dos contendores, que em geral ele prefere manter em segredo a unidade de suas tropas, dando a impress�o de que os gritos e pedras que se elevam contra seu advers�rio desde pontos diversos s�o o efeito espont�neo de uma rea��o popular.

S� na �ltima semana, recebi nada menos de seis ataques atrav�s da imprensa, sem contar os e-mails carregados de insultos, os constantes apelos � minha demiss�o enviados �s publica��es em que escrevo e as interven��es maliciosas, com nomes falsos, destinadas a confundir os debates e a criar uma atmosfera de suspeita no Forum que mantenho na minha homepage na internet. Tudo isso n�o me atemoriza no mais m�nimo que seja mas me mant�m ocupado e me exaure na faina da matar insetos � pois seria loucura recusar orgulhosamente um olhar de aten��o ao escorpi�o que se arma para me picar o ded�o do p�. E, se � �bvio que esse ass�dio multilateral nada tem de espont�neo, tamb�m � certo que, at� agora, eu tinha uma certa inibi��o de mencionar sua origem �grupal/coletiva�, para n�o acrescentar, ao desconforto da persegui��o, a humilha��o de ser chamado de maluco por aqueles mesmos que me puseram nessa situa��o maluca.�

Mas a senhora � como direi? � deu o servi�o. Liberou o assunto proibido. Mostrou que malucos s�o voc�s, malucos e obsediados pelo ��ncubo ideol�gico� de que falava Eric Voegelin; malucos ao ponto de tentar aprisionar um sujeito numa armadilha paran�ica s� para depois, quando ele se queixa, poder acus�-lo de paran�ico. Mas conspira��ezinhas de intrigantes dependem inteiramente do segredo, e o segredo depende de que, entre os conspiradores, nenhum seja vaidoso o bastante para gabar-se dele em p�blico. Pe�o pois desculpas por ter atribu�do inicialmente sua atitude � ma-f� em vez de � idiotice: a senhora junta as duas em doses iguais.

Devo lhe agradecer, ainda, por ilustrar com tanta clareza, neste seu segundo artigo, os procedimentos de manipula��o de texto que, por alto, assinalei no primeiro. Onde digo que um crime �� menos grave�, a senhora logo traduz para �� justific�vel�. � assim que a senhora transmuta as minhas palavras, de um apelo ao equil�brio, numa �defesa subliminar da tortura�.

Sou-lhe igualmente grato, ali�s, pela reda��o atenuada que agora a senhora deu � sua caluniazinha. Antes, eu era acusado de ostensiva �defesa da tortura�. Durante a semana, a senhora – ou o �grupal/coletivo�, o que d� na mesma – leu melhor, vacilou, viu que n�o dava para sustentar esse absurdo, mas, n�o desejando dar o(s) bra�o(s) a torcer, optou pelo meio-termo: a �defesa� pura e simples tornou-se �defesa subliminar�. Deve ser subliminar mesmo. T�o subliminar, que nem eu a percebi.

N�o obstante essa patente vontade de falsear, a senhora se gaba de que o seu grupo, �acima de qualquer pend�ncia pol�tica, � contra qualquer tipo de terrorismo�. Para prov�-lo, alega que o TNM n�o denuncia somente os crimes da ditadura, mas �tamb�m os que acontecem nestes tempos neoliberais�. Quer dizer: voc�s n�o discriminam a direita nova; falam dela como falam da velha. Com essa not�vel declara��o, voc�s exibem sua carteirinha de identidade ideol�gica no ato mesmo de jurar que n�o t�m carteirinha nenhuma.

O TNM, na verdade, s� existe com a finalidade sect�ria de denunciar os crimes de um lado para esconder os do outro.

Neste mesmo momento, enquanto a senhora revolve pap�is velhos, em busca de ind�cios que possa alegar contra direitistas nonagen�rios ou mortos, centenas de pessoas est�o sendo torturadas nos c�rceres de Cuba, do Vietn�, da Cor�ia do Norte, da China, com a cumplicidade moral, cultural e pol�tica de brasileiros. Um exemplo � o m�dico cubano Oscar Elias Biscet, reconhecido como �prisioneiro de consci�ncia� pela Anistia Internacional, que est� sendo torturado numa pris�o de Havana pelo simples fato de falar contra a pol�tica fidelista de abortos em massa. Enquanto isso o governo do Rio Grande do Sul gasta um milh�o e duzentos mil reais dos cofres p�blicos para a propaganda do comunismo cubano, ao mesmo tempo que a senhora e sua gangue se mobilizam para destruir a reputa��o de quem ache que � mais importante denunciar esses crimes de hoje do que vingar ofensas pol�ticas de trinta anos atr�s. Se isso n�o � ajudar o torturador, ent�o n�o sei o que � ajudar, nem o que � torturador.

A senhora se denuncia at� quando pretende bancar a esperta, acusando falhas na minha leitura do seu artigo. Digo que a senhora citou n�o mais que um exemplo de v�tima de atentados militares, e a senhora pula de alegria, achando que descobriu um erro, pois se lembra de ter citado tr�s. Mas n�o, dona. O que a senhora fez foi citar uma v�tima de atentado militar... e atribuir aos militares dois atentados de autoria desconhecida. N�o s�o, pois, tr�s exemplos: � um exemplo verdadeiro e dois falsos. Sei que para a senhora d� tudo na mesma, mas, lamento, n�o sou capaz de ler do modo como a senhora quer ser lida.

Se a senhora quisesse mesmo punir pessoas m�s, n�o precisaria busc�-las nos arquivos hist�ricos. H� muitos carrascos vivos. Se a senhora tem TV a cabo, ligue na Worldnet (Canal 29) a partir das 6h30 da manh�, no programa �TV Mart�, se��o �Pres�dio Pol�tico�, e ver� um desfile intermin�vel de dedos cortados, orelhas arrancadas, olhos vazados. S�o os prisioneiros fugidos daquele pa�s que Frei Betto, amigo insepar�vel do TNM, proclama ser �o reino de Deus na Terra�. Pelo seu n�mero e atualidade, esses casos deveriam nos escandalizar muito mais do que aquilo que, numa �poca distante, os mortos fizeram aos mortos. Mas a senhora e o sr. Molina preferem escrever a express�o �perigosos comunistas� entre ir�nicas aspas, para dar a impress�o de que n�o h� periculosidade alguma nos torturadores cubanos e nos seus acobertadores locais. Isso n�o � ser c�mplice moral da tortura? Subliminar, portanto, � a senhora. Mas n�o t�o subliminar que a gente n�o perceba claramente o vi�s deformante que a senhora interp�e entre o leitor e a vis�o dos fatos.

Perigoso, no seu entender, � o �perverso sil�ncio� em torno dos crimes da nossa ditadura militar. Mas que sil�ncio? A senhora n�o l� jornal, n�o v� televis�o? N�o tem filhos na escola, que venham lhe reproduzir o discurso das professorinhas contra os �horrores da ditadura�? N�o ouve o alarido incessante da m�dia em torno dos �anos de chumbo�? N�o l� as not�cias que a senhora mesma manda plantar contra meros suspeitos que, imediatamente e antes de qualquer comprova��o judicial, s�o ent�o demitidos de seus cargos e expostos � execra��o p�blica?

Sil�ncio h�, sim, em torno dos crimes da esquerda. Um sil�ncio total, obstinado, sistem�tico, s� varado pelo site de Ternuma, um mi�do fragmento de mem�ria hist�rica cercado de amea�as e insultos por todos os lados. Os defensores da guerrilha brasileira, por exemplo, alegam que ela foi rea��o leg�tima contra a ditadura. Mas como poderia s�-lo, se j� existia antes da ditadura, no tempo de Jo�o Goulart, em plena vig�ncia das liberdades democr�ticas? Ent�o ela j� era dirigida e financiada desde Cuba. Eu e muita gente na esquerda sempre soubemos disso, mas era proibido falar. Se d�ssemos com a l�ngua nos dentes, desmantelar�amos nossa pr�pria ret�rica, confessando que a abomin�vel �direita� tinha dito a verdade, que as guerrilhas n�o eram rea��o nenhuma contra a ditadura, que a ditadura � que era uma rea��o leg�tima contra uma agress�o internacional. Para ocultar isso, n�o s� mentimos na ocasi�o, mas continuamos mentindo durante vinte anos. Com uma diferen�a: eu parei; voc�s continuam. A pesquisadora Denise Rollemberg, que segundo leio em Elio Gaspari foi a primeira a conseguir investigar o assunto depois de tr�s d�cadas de compacta censura, diz que esses �epis�dios s�o guardados a sete chaves e quem conhece n�o fala�. N�o fala, para �n�o dar armas ao inimigo�. No meu tempo de milit�ncia, essa desculpa justificava tudo. �ramos adestrados para sobrepor, ao crit�rio verdade-falsidade, o par schmittiano amigo-inimigo. Esse adestramento � o pai de todos os totalitarismos, de todas as tiranias, de todas as mentiras ideol�gicas. E n�s o aceit�vamos como o mais alto padr�o de moralidade conceb�vel, cobrindo de inj�rias quem n�o se enquadrasse nele. O seu maldito �grupal/coletivo�, dona Cec�lia, n�o � outra coisa sen�o o sindicato dos adestradores.

23/1/2001