Socialismo e cara-de-pau
Olavo de Carvalho
Um dos mais not�rios ap�stolos do socialismo nestas plagas, cujo nome n�o declinarei para que n�o digam que � persegui��o, gabava-se outro dia de que a esquerda sempre foi a primeira a reconhecer o fracasso da URSS. Quatro d�cadas de experi�ncia n�o bastaram para me habituar � cara-de-pau esquerdista. Ainda me surpreendo quando, batendo nela com os n�s dos dedos, ou�o o inconfund�vel "toc-toc" da madeira velha. Como os livros anticomunistas foram desaparecendo de circula��o desde os anos 60, enquanto seus contr�rios abarrotavam cada vez mais as prateleiras das livrarias (mostrando que a censura extra-oficial das patrulhas foi muito mais persistente do que a censura governamental), � uma del�cia, para essa gente, poder falar � plat�ia jovem com a plena seguran�a de que ela ignora tudo da hist�ria do socialismo, ou pelo menos de que s� a conhece pela vers�o conveniente. Nenhum sujeito com menos de 50 anos conhece hoje os nomes de Viktor Kravchenco, Walter Krivitsky, Elizabeth Bentley, Whittaker Chambers. Se os conhecesse, saberia a que prod�gios de falsifica��o e difama��o organizada a esquerda p�de chegar para ocultar a divulga��o de qualquer not�cia que pudesse manchar a santa imagem do comunismo. Kravchenco, um exilado russo em Paris, publicou em 1946 o primeiro testemunho detalhado sobre os campos de concentra��o sovi�ticos. Imediatamente ergueu-se contra ele o vozerio maci�o da intelectualidade francesa - numa gama que ia do comunista Roger Garaudy e seu "companheiro de viagem" Jean-Paul Sartre at� as revistas cat�licas "Esprit" e "T�moignage Chr�tien" (pois na Fran�a os Boffs & Bettos j� abundavam naquela data) - para acus�-lo de ser um mentiroso a soldo da CIA. Homem simples, Kravchenco enfrentou com brio a assembl�ia de vacas sagradas, processando seus detratores e trazendo para diante do j�ri dezenas de ex-prisioneiros, entre os quais Margarete Buber-Neumann, neta do eminente fil�sofo Martin Buber, que confirmaram de ponta a ponta seu depoimento. Sartre et caterva foram condenados a pagar indeniza��o, mas o vencedor, velho e extenuado, morreu logo depois da batalha. Ent�o foi f�cil para seus inimigos fazer baixar sobre o caso uma pesada e dur�vel cortina de sil�ncio. O livro de Kravchenco, "Escolhi a liberdade", � hoje imposs�vel de encontrar exceto em sebos. Whittaker Chambers e Elizabeth Bentley, ex-agentes do Comintern, descreveram as opera��es secretas de que tinham participado nos EUA, deixando claro que o Partido Comunista americano e sua rede de colaboradores informais nos meios elegantes n�o eram sen�o uma fachada da espionagem sovi�tica. O establishment universit�rio fez o poss�vel para desqualificar os depoimentos de ambos, ainda que confirmados pelo de Krivitsky, um general com alto posto na NKVD que fugiu para o Ocidente e, logo ap�s contar o que sabia, apareceu morto a tiros num hotel em Washington, sendo sua mem�ria sepultada sob densas camadas de material acad�mico difamat�rio. As mem�rias de Chambers, "Witness", um dos mais belos livros da l�ngua inglesa, desapareceram dos cat�logos das editoras. Ap�s o fim da Guerra Fria, os governos ocidentais suspenderam todo esfor�o sistem�tico de propaganda anticomunista. A esquerda, em vez de retribuir o gesto cavalheiresco, aproveitou-se da tr�gua unilateral para consolidar sua posi��o nos meios intelectuais. Nas d�cadas de 70 e 80, a produ��o de teses anti-Kravchenco, anti-Chambers etc. foi t�o intensa que, na entrada dos anos 90, a doutrina de que a esquerda americana era puramente aut�ctone e sem qualquer liga��o significativa com a URSS podia se considerar triunfante. Ent�o... Bem, ent�o veio a queda da URSS e a abertura dos arquivos da KGB. A� houve choro e ranger de dentes. Toneladas de telegramas, de bilhetes cifrados, de ordens de servi�o, de recibos milion�rios vieram � tona. Hoje n�o � mais poss�vel ocultar: cada palavra de Kravchenco, de Krivitsky, de Bentley, de Chambers era verdade, assim como as de Robert Conquest, o primeiro historiador cient�fico dos Processos de Moscou, fartamente difamado entre seus pares. O estado de esp�rito atual, entre acad�micos que estudam o assunto, pode ser resumido nos t�tulos de dois livros de pesquisadores que mergulharam a fundo nos arquivos de Moscou. O primeiro � o de John Lewis Gaddis, publicado pela Oxford University Press: "We now know", "Agora n�s sabemos". O segundo � o de Richard Gid Powers (Yale University Press), "Not without honor", "N�o sem honra" - o reconhecimento de que o anticomunismo americano n�o foi uma s�rdida campanha de mentiras, mas um s�rio esfor�o de fazer prevalecer a verdade sob o fogo cerrado de um ex�rcito mundial de prestigiosos vigaristas. At� ao remoto Brasil a onda de revela��es trouxe alguma luz, mostrando que o famoso "ouro de Moscou", longamente explicado como inven��o maldosa da CIA, havia com efeito tilintado nos bolsos de nossos grotescos heroizinhos comunistas. Depois disso, que mais restava � esquerda sen�o passar um tardio e vergonhoso recibo do fato consumado? Foi assim que em 1997 apareceu o "Livro negro do comunismo", que, comprovando item por item as den�ncias direitistas que a esquerda mundial desmentira desde a d�cada de 30, ainda procurava diminuir a extens�o quantitativa do desastre mas n�o conseguia reduzir o n�mero de v�timas do comunismo para baixo da cifra dos cem milh�es. Mesmo assim, o livro n�o saiu sem provocar rea��es indignadas (tipo "Onde j� se viu dar muni��o ao inimigo?"), nem sem suscitar a produ��o de um atabalhoado e ineficac�ssimo contraveneno, o qual, sob o t�tulo "O livro negro do capitalismo", s� � levado a s�rio, precisamente, pela an�nima figura�a aludida no in�cio deste artigo, cujo anonimato preservo, tamb�m, por julgar que esse deveria ser o seu estado natural.
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