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Cabe�as

Olavo de Carvalho
O Globo, 10 de novembro de 2001

 

Por menos que se queira diabolizar o comunismo, um ponto em comum entre ele e o diabo � uma realidade ineg�vel: ambos fazem menos dano a seus inimigos do que a seus amigos. Todos os regimes de direita, somados, mataram menos comunistas do que Stalin ou Mao individualmente, e em parte alguma da Am�rica Latina se fuzilaram tantos revolucion�rios de esquerda quanto em Cuba: dos veteranos de Sierra Maestra s� sobraram praticamente Fidel e seu irm�ozinho Raul.

Esse dado � bem conhecido, mas raramente se extrai dele a mais �bvia das conclus�es: tentar aplacar a f�ria comunista com agrados, lisonjas e propinas � infinitamente mais perigoso do que combat�-la de frente. Juro, amigos: eu, que n�o passo um dia sem cuspir nos �cones da esquerda, corro menos risco, na hip�tese da ascens�o dos comunistas ao poder, do que aquele que tente seduzi-los com sorrisos for�ados, presentinhos extorquidos e beijocas insossas de garotinha assustada. De mim eles t�m raiva e medo. Daquele, n�o t�m sen�o desprezo -- o desprezo do estuprador que, ao gozar no corpo da v�tima, j� entrev� o corpo dela morto e jogado aos urubus.

Penso nisso ao contrastar a imagem de feras domesticadas, mansas e bondosas que os jornalistas de esquerda t�m neste pa�s, com os urros de �dio � �imprensa burguesa� que eles deram ainda h� pouco no �Congreso de Periodistas Lationoamericanos y Caribe�os�, realizado em Havana entre 8 e 11 de outubro sob o lema �Un nuevo periodismo�. Urros de �dio que n�o ficaram nisso, mas foram seguidos por juras de morte e planos muito bem definidos para execut�-las num prazo que surpreender�, pela rapidez, cada empres�rio auto-satisfeito que se gabe de ter domado seus comunistas de estima��o � for�a de cheques, afagos e promo��es.

Jornalistas de 29 pa�ses -- inclusive o nosso -- participaram do encontro, que, preparat�rio ao F�rum Mundial de Educa��o anunciado para o ano que vem no Rio Grande do Sul, teve o apoio da prefeitura de Porto Alegre e foi abrilhantado por um lindo discurso do sr. Fidel Castro -- aquele mesmo Fidel Castro que, na sua �ltima visita ao Brasil, foi cortejado at� o limite da obscenidade pela burguesia local.

Das teses aplaudidas pelo simp�sio, publicadas pelo jornal chileno �El Siglo� de 26 de outubro, tr�s s�o especialmente interessantes:

Primeira: o jornalismo da Am�rica Latina ainda �n�o est� � altura das lutas travadas pelo povo da regi�o�.

�� altura�? Todos os cargos conquistados, todas as p�ginas concedidas, sem r�plica, ao assassinato moral de anticomunistas, toda a amoldagem do vocabul�rio aos c�nones politicamente corretos, todo o ataque maci�o � moralidade religiosa tradicional, toda a elimina��o de qualquer anticomunismo expl�cito, toda a supress�o de not�cias inconvenientes ao renascimento do comunismo, toda a progressiva e implac�vel redu��o do espa�o dos liberais e conservadores que n�o consintam em ater-se a in�cuas obje��es econ�mico-administrativas, toda a glamuriza��o idol�trica de artistas e intelectuais militantes, tudo isso -- toda a hegemonia gramsciana, em resumo -- n�o basta. Os comunistas exigem mais. Precisamente, que mais? Leia a segunda tese.

Segunda: � preciso �romper o bloqueio informativo estabelecido pelas grandes cadeias de imprensa� em torno do regime cubano; desencadear, como resumiu Fidel, �la batalla de la verdad contra la mentira�.

Pelo menos no Brasil, o �nico bloqueio vigente � o de not�cias contra Cuba. H� 30 anos n�o leio em nossos jornais uma �nica men��o aos prisioneiros pol�ticos em Havana, �s armas bacteriol�gicas desenvolvidas no laborat�rio de �La Fabriquita�, �s liga��es entre o governo cubano e o narcotr�fico, aos intermin�veis fuzilamentos de fugitivos, aos �ltimos livros proibidos, � nova tabela de pre�os das �gineteras� (um sandu�che, um ma�o de cigarros), � efic�cia invej�vel de um Estado policial que tem um olheiro para cada 28 habitantes. Em contrapartida, l�em-se toda semana impreca��es contra o bloqueio econ�mico americano, homenagens chorosas � mem�ria do Che, recorda��es nost�lgicas de nossos velhos terroristas em Havana, not�cias de pr�mios, cargos, desagravos e indeniza��es concedidos a assassinos profissionais treinados em Cuba.

Mas tudo isso ainda �n�o est� � altura�. E tudo o que n�o esteja � altura da expectativa de Fidel -- � bloqueio. A que altura se pretende chegar na luta pela sua remo��o, eis o que se torna expl�cito na terceira tese.

Terceira: destruir a liberdade de imprensa �burguesa� defendida pela SIP, Sociedade Interamericana de Imprensa, e implantar no continente a verdadeira liberdade de imprensa, tal como existe... em Cuba! Sim, a liberdade de imprensa que conhecemos � apenas a liberdade �de um grupo de indiv�duos poderosos�. Liberdade efetiva, completo direito � informa��o, s� em Cuba.

Como funciona esse direito � informa��o, todos sabemos. Cabrera Infante deu-nos uma descri��o dele em �Mea Cuba�. Todas as editoras s�o do Estado. Para publicar o que quer que seja em livros ou peri�dicos o sujeito tem de se inscrever num sindicato que, ao primeiro desvio da pol�tica oficial, cassa o seu registro. A� o ex-jornalista vai procurar emprego, mas � proibido dar emprego a quem tenha sido expulso de um sindicato. Ele pode pedir ajuda aos amigos, mas dificilmente eles v�o dar, porque � crime ajudar um inimigo do Estado. Restaria a mendic�ncia, se tamb�m n�o fosse proibida, ou o ex�lio, se sair de Cuba n�o fosse mais proibido ainda. Mas, se o sujeito sobreviver aos tiros da pol�cia mar�tima e escapar inc�lume aos dentes dos tubar�es no mar do Caribe, a bordo de um pneu, poder� talvez arranjar emprego em algum jornal de exilados em Miami. E a� tudo o que ele escreva sobre o que passou em Cuba ser� impugnado pelo mundo afora -- sobretudo no Brasil -- como s�rdida propaganda emanada da �m�fia cubana�.

Tal � o tipo de liberdade que os 300 jornalistas signat�rios da declara��o final do congresso desejam para n�s.

Se, diante disso, ainda h� quem ache que a �nsia de poder dos comunistas pode ser aplacada mediante promo��es e afagos ou mediante o sacrif�cio ritual de algum reacion�rio sobrevivente, pense nisso: nenhuma ambi��o pode ser mais forte que a de tornar-se um �transformador do mundo�. Quem, sonhando com poderes demi�rgicos, h� de se contentar com um emprego na m�dia? N�o h� emprego, n�o h� lisonja, n�o h� amizade que possa desviar de seu objetivo a casta de intelectuais ativistas que aspira a moldar a Humanidade, como Deus, � sua imagem e semelhan�a.

Ou voc�s arrancam o comunismo da cabe�a dessa gente, ou ela arrancar� suas cabe�as. As suas, primeiro. A minha, depois, talvez.