Em busca da justi�a
Olavo de Carvalho
Malgrado as dificuldades e limita��es que ter� de enfrentar, o julgamento dos guerrilheiros do Khmer Vermelho, que o governo do Camboja e as Na��es Unidas anunciam para este ano, pode ser o primeiro passo para uma tomada universal de consci�ncia de que os colaboradores de regimes comunistas s�o culpados de crimes contra a humanidade, exatamente no sentido e na medida que o foram os nazistas condenados pelo Tribunal de Nuremberg. Um quarto de s�culo atr�s, poucas semanas antes da queda de Saigon, o grupo liderado por Pol Pot tomava o poder no vizinho Camboja e, em nome da nova cultura socialista, iniciava o massacre dos recalcitrantes e desajustados, chegando em poucos anos � cifra de dois milh�es de mortos. Esses crimes, cometidos por cambojanos contra seus pr�prios compatriotas desarmados, em tempo de paz, suscitaram imensuravelmente menos revolta e gritaria internacional do que os bombardeios americanos no Vietn� ou do que as mortes de tr�s mil esquerdistas chilenos ocorridas em ambiente de guerra civil. Um dos obst�culos tem�veis que o julgamento do cl� Pol Pot encontrar� pela frente �, sem d�vida, a m� vontade da m�dia internacional c�mplice. Desde que, no come�o dos anos 90, o dissidente Vladimir Bukovski trouxe dos Arquivos de Moscou as provas de que praticamente toda a imprensa social-democr�tica europ�ia tinha sido financiada pela KGB na d�cada anterior � suscitando imediatamente a eclos�o da Opera��o M�os Limpas, com que uma organizada elite de ju�zes comunistas desviou a aten��o do p�blico para casos de corrup��o dom�stica � ningu�m mais tem o direito de imaginar que prestigiosos jornais de centro-esquerda, na It�lia, na Fran�a ou na Alemanha, s�o fontes fidedignas de informa��o. A participa��o ativa de um deles naquele grotesco ritual de beatifica��o das Farcs que foi o F�rum Social Mundial de Porto Alegre assinala toda a diferen�a que existe entre jornalismo e propaganda. A despropor��o monstruosa entre a espetacular campanha mundial anti-Pinochet e o modest�ssimo destaque que se vem dando ao julgamento do Khmer Vermelho n�o � coincid�ncia: �, no m�nimo, um esfor�o consciente para varrer para baixo do tapete as culpas dos colaboradores europeus do genoc�dio cambojano. Nada est� mais longe da mentalidade atual dos remanescentes esquerdistas no mundo do que a hip�tese de assumirem, mesmo em pensamento, a mais m�nima parcela de culpa por todo o mal que ajudaram a fazer. Mesmo quando reconhecem o horror da ditadura socialista constru�da na URSS, na China, em Cuba, n�o se sentem culpados, mas v�timas. A desilus�o que tiveram com seus sonhos de juventude lhes parece um sofrimento incomparavelmente mais digno de piedade do que aquele que, em nome desses sonhos, eles e seus c�mplices impuseram a um quarto da popula��o do globo terrestre. Que s�o, de fato, cem milh�es de mortos e muitas centenas de milh�es de pessoas reduzidas ao trabalho escravo, perto da humilha��o de alguns grupos de intelectuaizinhos obrigados a reconhecer, se tanto, pequenos erros de estrat�gia na realiza��o de seus lindos projetos sociais? Quando digo que h� algo de anormal, de doente, de sociop�tico na mentalidade de comunistas, socialistas e esquerdistas em geral, � a isso que me refiro: � a essa incapacidade radical que cada um deles tem de julgar-se a si pr�prio pelos mesmos padr�es com que julga os outros. � a essa completa e profunda falta do senso de igualdade nos ap�stolos da igualdade. � a esse total e soberano desprezo pelo Segundo Mandamento. Gra�as � universalidade desse fen�meno, o julgamento do Khmer Vermelho n�o somente se arrisca a ser bastante amortecido pela m�dia mundial, mas ainda a ter de contentar-se com enviar ao banco dos r�us apenas uma parte dos l�deres conhecidos desse movimento criminoso, pois v�rios remanescentes dele ocupam posi��es de destaque na sociedade cambojana atual, e dificilmente as autoridades judici�rias ter�o a coragem ou os meios de mexer com eles � sobretudo com Ieng Sary, cunhado do falecido Pol Pot e ex-ministro das Rela��es Exteriores. Para que o tivessem, seria preciso muito mais apoio internacional do que aquele com que poder�o contar. Em todo caso, o julgamento � um come�o. Antes punir somente alguns culpados do que premiar a todos. Qualquer passo, mesmo modesto, que se d� no sentido de estabelecer a equipara��o legal de todos os crimes de genoc�dio serve para aproximar a humanidade da cura da esquizofrenia moral que a acometeu desde que, com a alian�a entre Roosevelt e Stalin, socialistas e comunistas adquiriram o direito de ser nazistas com boa consci�ncia. Recentemente, na Rom�nia, o ex-ministro das Rela��es Exteriores, o fil�sofo e meu querido amigo Andrei Pleshu, descobriu um fato que o atirou ao fundo da maior depress�o: o mais respeitado l�der democr�tico do pa�s e ex-gr�o-mestre da Ma�onaria, o senador Dan Lazarescu, tinha sido, em segredo, colaborador da pol�cia secreta comunista; seus relat�rios haviam enviado � pris�o n�o somente v�rios de seus companheiros ma�ons (a Ma�onaria romena era inimiga declarada do regime), mas tamb�m diversos membros de outras fac��es dissidentes. Cortando na pr�pria carne � pois Lazarescu era pessoa de sua estima e admira��o � Pleshu divulgou a descoberta. Lazarescu foi expulso do Senado e da Ma�onaria, aos oitenta e tantos anos. A Rom�nia estava mortalmente triste mas muito mais saud�vel. H� muitos outros parceiros do ditador Ceaucescu espalhados na alta sociedade romena. Mas o desmascaramento de um s� dentre eles ajuda, pelo menos, a impedir que a for�a do esquecimento transforme, por decurso de prazo, a injusti�a em justi�a.
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