A �tica da baixeza
Olavo de Carvalho
Anterior � definitiva ades�o do autor ao ide�rio liberal, e ainda marcado pelas resson�ncias de sua forma��o marxista, "Saudades do carnaval. Introdu��o � crise da cultura" (S�o Paulo, Forense, 1972) ainda �, para o meu gosto, o melhor livro do inesquec�vel Jos� Guilherme Merquior. Muitos preferem "A natureza do processo", mas tenho tantas obje��es ao triunfalismo progressista meio hegeliano, meio kantiano, a� assumido pelo autor na maturidade do seu pensamento, que prefiro ficar com a vis�o hist�rica mais tr�gica, frankfurtiana, que entenebrecia as medita��es do jovem fil�sofo. "Saudades do Carnaval" permanece, at� hoje, a mais ambiciosa tentativa de situar uma "interpreta��o do Brasil" no quadro da hist�ria geral das "paid�ias" ocidentais - os ideais educativos que vieram, de �poca em �poca, orientando e cristalizando os sucessivos esfor�os da nossa civiliza��o rumo a um modelo �tico habilitado a conciliar a organiza��o pr�tica da sociedade com as exig�ncias da dignidade espiritual da esp�cie humana. Digo a mais ambiciosa, e n�o necessariamente a mais s�ria, porque em seriedade � igualada por sua precursora imediata, "Desenvolvimento e cultura. O problema do estetismo no Brasil", de M�rio Vieira de Mello (S�o Paulo, Nacional, 1963), a qual, sem tomar esse tema geral por seu objeto expl�cito, muito fez avan�ar a sua compreens�o ao destacar, na forma��o da mentalidade das nossas classes letradas, em vez da heran�a dos grandes ideais �tico-pedag�gicos, a influ�ncia predominante de uma hipnose est�tica contra�da de Jean-Jacques Rousseau, pseudo-ideal educativo que ainda hoje contamina de um vi�s teatral, posado e desrealizante o grotesco debate "�tico" em que se deleita uma "ntelligentzia" microc�fala. A import�ncia vital dessas duas obras para n�s hoje em dia reside precisamente no fato de que, na aus�ncia de uma vis�o dos modelos superiores de conduta que fundaram a nossa civiliza��o -- para n�o falar das outras -- , toda discuss�o �tica tende a se perder em casu�smos e oportunismos de uma baixeza incompar�vel, invertendo no fim todos os valores e consagrando como exemplos de honradez e quase santidade os politiqueiros mais mesquinhos, os agitadores mais brutais, as estrelas mais ocamente vaidosas do "show business". Que de in�cio todas as esperan�as se depositassem sonsamente na promessa de "passar o Brasil a limpo" mediante CPIs e cassa��es, repetindo com signo ideol�gico inverso as Comiss�es Gerais de Inqu�rito do regime militar, mostra apenas a pressa indecente com que um descarado revanchismo, apostando na falta de mem�ria popular, lan�a m�o das armas cujo uso condenava em seus advers�rios. Mas que, passados doze anos de esc�ndalos, persegui��es, demiss�es e "impeachments", sem outro resultado vis�vel sen�o a multiplica��o das den�ncias e a fixa��o do pa�s num estado cr�nico de desprezo a si mesmo, ainda haja quem insista em que "o problema do Brasil � a impunidade" e em que tudo se resolver� com novos acr�scimos de ferocidade na autodestrui��o das institui��es, eis um fen�meno que denota, nas nossas classes falantes, j� n�o apenas a recusa obstinada de aprender com a experi�ncia, j� n�o apenas a confian�a cega nas virtudes da orat�ria selvagem, mas, positivamente, uma visceral desonestidade e uma falta completa de amor ao Brasil. N�o existe �tica, n�o existe moral onde n�o existe amor � verdade, e n�o existe amor � verdade onde n�o existe a paci�ncia de busc�-la. Quando os intelectuais abandonam toda investiga��o s�ria para consagrar-se � tarefa auto-assumida de "fazer hist�ria", de moldar o mundo � sua imagem e semelhan�a, de derrubar governos e inventar sociedades, a consci�ncia geral se rebaixa ao n�vel dos cabos eleitorais e dos incitadores de desordens. Nesse momento, dizia Eric Voegelin, os personagens mais desprez�veis e caricatos, que numa situa��o normal seriam votados ao esquecimento ou ao rid�culo, adquirem s�bito relevo como encarna��es literais e rasas dos caprichos da multid�o enfurecida que, na desorienta��o geral, se afirmam como um "Ersatz" do bem e da justi�a. J� observei que, em outras �pocas, "l�der popular" era uma pessoa de extra��o social humilde que, por seus m�ritos e esfor�os pessoais, se elevava acima de seus pares sem perder o elo de fidelidade com o meio de origem. Hoje, ou � um diplomado que se disfar�a de proleta, imitando o vestu�rio e a fala dos pobres (o que � no m�nimo um desrespeito), ou � algum filho do acaso, que, vindo de baixo e desfrutando � larga de seu novo padr�o de vida, insiste em conservar e alardear com orgulho sua condi��o origin�ria de pessoa de poucas letras, choramingando sua exclus�o do ensino "elitista" e promovendo a identifica��o, altamente difamat�ria, da pobreza com a ignor�ncia. Esses tipos s�o hoje exibidos � multid�o como modelos de vida humana, para a edifica��o de nossas crian�as. Em torno deles, um c�rculo de intelectuais bajuladores consagra-os como personifica��es m�ximas do g�nio popular brasileiro. Deprimente e aviltante, esse fen�meno reflete, nas gentes acad�micas, a perda completa da orienta��o no universo dos valores e da hist�ria. Levado pelo discurso insano de acad�micos semiletrados, o Brasil desgarra-se do eixo do mundo, errando num espa�o sem fundo onde todas as propor��es se embaralham, onde os ju�zos morais mais �bvios suscitam esc�ndalo e onde o disforme e o obscuro se tornam a medida de todas as coisas. Eis o motivo pelo qual � urgente retomar os estudos que foram iniciados por Jos� Guilherme Merquior e M�rio Vieira de Mello. Ou aprendemos a encaixar as aspira��es brasileiras no quadro de crit�rios �ticos universalmente v�lidos -- pois este era o problema que os atormentava --, ou logo n�o conseguiremos conceber moralidade mais alta que a do delator ressentido que, entre uivos de �dio c�vico, envia seus desafetos � guilhotina. |