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A av� de todos os crimes

Olavo de Carvalho
Época, 5 de agosto de 2000



A cren�a de que a mis�ria produz a viol�ncia �, ela pr�pria, geradora de viol�ncia

Na sucess�o memor�vel de li��es sobre as causas sociais do crime, destacou-se a do secret�rio da Seguran�a do Rio Grande do Sul, Jos� Paulo Bisol: a onda de viol�ncia � criada por um �estado de necessidade� que torna essas a��es moralmente leg�timas.

O doutor Bisol, caso o leitor n�o recorde, � aquele c�rebro prodigioso que, na CPI do Or�amento, apreendeu 40 quilos de documentos e, 24 horas depois, j� apresentava suas conclus�es da leitura, s� n�o entrando para o Guinness porque n�o h� justi�a neste mundo. Mas raciocinemos, n�s, em velocidade humana. Em dois sentidos pode-se dizer que a mis�ria produz o crime. Num sentido direto, o homem a quem falta o p�o para os filhos vai e rouba um p�o. No outro sentido, a mis�ria geral e difusa pode induzir ao crime, por cont�gio ps�quico, um cidad�o que n�o seja diretamente afetado por ela; um cidad�o que tenha n�o somente o indispens�vel � vida, mas ainda o excedente para a compra de armas e drogas.

Os crimes cometidos no primeiro sentido n�o s�o crimes. A prem�ncia da situa��o desconfigura o delito e o acusado sai livre, sem entrar nem mesmo nas estat�sticas. O doutor Bisol, leitor voraz, n�o pode ignorar esse detalhe penal. Mas, numa discuss�o sobre a viol�ncia brasileira, a men��o a esses pseudocrimes, n�o sendo alega��o extempor�nea de um ignorante, s� pode soar como argumenta��o impl�cita em favor da segunda hip�tese: a escusa do estado de necessidade deve ser estendida �queles casos em que a liga��o entre mis�ria e crime � indireta. Para justificar o delito n�o � preciso que seu autor seja compelido por uma necessidade pessoal. Basta a mis�ria geral. A mis�ria dos outros. Eventualmente, a mis�ria das v�timas.

Mas, onde a liga��o entre mis�ria e crime n�o � direta, tamb�m n�o � necess�ria, for�osa, inescap�vel: � casual e probabil�stica. Premido pela necessidade pessoal, qualquer um roubaria. Sugestionados pela mis�ria geral, uns roubam, outros n�o. Depende. Depende de qu�? Depende de uma escolha � daquela escolha, justamente, que o homem necessitado n�o podia fazer. Necessidade � impossibilidade de escolha. Se h� escolha, n�o h� necessidade. A mis�ria, a�, n�o � causa: � simples ocasi�o do crime.

Escolhas dependem de cren�as. O homem livre rouba ou se abst�m de roubar, mata ou se abst�m de matar, conforme creia que deve ou n�o faz�-lo, que � certo ou errado faz�-lo. A doutrina Bisol parece lhe dizer que � certo. N�o o diz claramente, mas o insinua com aquela nebulosidade que, confundindo o ouvinte e o pr�prio falante, mais facilmente ainda os induz a aceitar o que despertos e atentos rejeitariam.

Hoje essa doutrina n�o apenas � aceita em muitos meios, mas todo impulso de rejeit�-la � a� recebido com exaltadas demonstra��es de esc�ndalo que inibem as obje��es, ao mesmo tempo que, reprimindo a discuss�o franca, adensam ainda mais a n�voa catal�ptica da indistin��o entre necessidade e escolha, entre causa e ocasi�o. E a n�voa, ao se expandir sob os ausp�cios da classe culta, amortece no criminoso potencial os �ltimos escr�pulos de consci�ncia. Filha do lusco-fusco, m�e da escurid�o, ela � a av� de todos os crimes.