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Sacerd�cio do Anticristo

Olavo de Carvalho
Jornal da Tarde, 1o de fevereiro de 2001

 

Cuba � o �nico pa�s do Ocidente onde o cidad�o pode ser preso por mandar batizar um filho. Quando um ex-sacerdote diz ver nesse pa�s "o reino de Deus na Terra", est� claro que ele n�o se despiu apenas da batina, nem da f� cat�lica, mas dos �ltimos vest�gios de moral crist�, mesmo laicizada, que ainda pudessem restar no seu cora��o de ap�stata.

Isso n�o quer dizer que seja um ateu. O ate�smo � uma rejei��o da f�, n�o uma invers�o dela. A invers�o coloca no topo o que estava embaixo, chamando o inferno de c�u, odiando o que Deus ama e amando o que Deus abomina. O Anticristo n�o � um n�o-Cristo, uma supress�o do Cristo: � um Cristo �s avessas, que ilude as multid�es porque corresponde ao Cristo ponto por ponto, apenas de cabe�a para baixo. Por isso o ex-sacerdote n�o se torna ateu. De certo modo, continua sacerdote. Sem isso, n�o poderia oficiar o rito diante do crucifixo invertido.

A invers�o n�o troca somente o alto pelo baixo, mas o interior pelo exterior. Toda religi�o, e o cristianismo tamb�m, possui um n�cleo de doutrina imut�vel e uma infinidade de s�mbolos exteriores que mudam com o tempo, refletindo a adapta��o da f� �s modas culturais e �s varia��es do imagin�rio popular. Numa �poca com forte senso da hierarquia, a imagem de Cristo-Rei sugeria a analogia da Nova Alian�a com a estabilidade da ordem social e c�smica. Numa sociedade democr�tica, predomina a imagem do Cristo simples e popular, a circular an�nimo entre mendigos e prostitutas. Cristo cont�m em si, inseparavelmente, a autoridade e a simplicidade. A moda cultural enfatizar� autonomamente uma ou outra, de maneira que ela acabe por se tornar, sozinha, o emblema do cristianismo. A essa altura, que faz a Igreja do Anticristo? Enverga esse emblema e o ostenta com tal espalhafato, que ele acaba por encobrir e substituir o n�cleo da f�, jogando-o fora em nome de algo que, aos olhos da multid�o, passa pelo mais puro cristianismo.

A diviniza��o dos s�mbolos da realeza permitiu que a autoridade do Cristo-Rei personificada no monarca legitimasse, sem grande esc�ndalo p�blico, a matan�a de bispos e santos. Numa �poca de igualitarismo, a moda cultural � a "igreja dos pobres". Em seu nome s�o renegados e abolidos os Dez Mandamentos, o Credo e cada palavra do Evangelho, sem que ningu�m se d� conta de ter-se afastado do cristianismo um s� mil�metro. Proibir a missa, criminalizar o batismo, matar multid�es de crentes tornam-se provas de profunda f� crist�.

Quanto mais advent�cio, perif�rico e desprez�vel � o s�mbolo, maior seu poder de usurpar o lugar do simbolizado. N�o conhecemos com certeza, por exemplo, a figura real do Jesus hist�rico. Todas as suas representa��es s�o imagin�rias. Algumas �pocas conceberam-no com os tra�os nobres de um pr�ncipe, outras com a fisionomia r�stica de um campon�s; umas, como um adulto atl�tico, de olhar severo; outras, como um jovem de express�o sonhadora e barba rala. Na nossa �poca, onde � moda populista se somou a idolatria da juventude, veio a predominar esta �ltima imagem. E a coincid�ncia fortuita dela com os tra�os de Ernesto Che Guevara basta para dar verossimilhan�a � identidade essencial desse genocida frio e psicopata com o pr�prio Jesus Cristo, proclamada pelo sacerdote acima referido. Esa� trocou sua primogenitura por um prato de lentilhas, que ao menos o alimentou por umas horas; o sacerdote de que estou falando sugere que a troquemos pela contempla��o idiota de um "poster" que, se fosse o dos Beatles, funcionaria igualmente bem para essa finalidade.

Mas quem � o tal sacerdote? Alus�es e indiretas, sobretudo proferidas com ar de inoc�ncia, n�o s�o do meu estilo. Se me perguntarem se estou falando do tal de Betto, responderei que indiscutivelmente sim, com a ressalva de que n�o o aponto como indiv�duo e sim como amostra casual de um tipo cujo nome � legi�o. Tanto que chego a confundi-lo com o sr. Boff, em raz�o da xifopagia espiritual que os une, e, n�o conseguindo distinguir nenhum dos dois do peruano Gutierrez que de certo modo os gerou, poderia aplicar a qualquer dos tr�s a descri��o acima, sem mudar uma s� palavra. Pouco importam, enfim, os nomes: o sacerd�cio do Anticristo � miss�o impessoal como um comissariado do povo na extinta URSS, e ningu�m lhe vende a alma sem entregar, com ela, a identidade pessoal.