Ainda a arte de escrever
Olavo de Carvalho
Como eu vinha dizendo que imitar � o melhor jeito de aprender a escrever, muitos leitores, com raz�o, sentiram-se no direito de me perguntar quem imitei. Ao longo da vida, fiz muitos exerc�cios de imita��o. N�o publiquei nenhum, � claro, nem os guardei. Mas ainda ressoam no que escrevo -- aos meus pr�prios ouvidos, pelo menos -- as vozes dos mestres que escolhi. Os principais foram, entre os cl�ssicos da l�ngua portuguesa, Cam�es, Ant�nio Ferreira, Fern�o Mendes Pinto, Camilo e Euclides. Machado foi um deleite, n�o um aprendizado. Nunca o imitei conscientemente, porque, malgrado a devo��o que lhe tenho, as diferen�as de personalidade entre n�s s�o demasiado fundas. N�o consigo me conceber t�mido, recatado, elegante e, ademais, funcion�rio p�blico. Mas com facilidade me imagino um navegante e aventureiro como os nossos cl�ssicos renascentistas, um polemista doido �doubl� de metaf�sico como Camilo, um misto de cientista e rep�rter como Euclides. A empatia, no aprendizado por imita��o, � tudo. Por isto cada um tem de escolher seus modelos. Os meus entram aqui como simples amostras. Do E�a, para dizer a verdade, jamais gostei muito. Ele escreve t�o gostoso porque seu pensamento � f�cil, leviano, sem densidade ou luta interior. N�o me lembro de ter voltado jamais a uma p�gina sua. Pessoa, tanto quanto Machado, foi um amor imposs�vel. Ele � maravilhoso, mas eu jamais desejaria ser esse sombrio professor de ingl�s, todo encapotado no mist�rio e sem �nimo de decifr�-lo. Tamb�m nada devo literariamente a Bruno Tolentino, malgrado a amizade e a admira��o sem reservas que tenho por ele. O fator que nos separa � sociol�gico. Brega por origem e voca��o, n�o posso me identificar com as ra�zes culturais -- portanto, nem com o t�nus verbal -- de um rapaz de fam�lia c�lebre, parente de meio mundo, criado entre literatos. Fui amigo e devoto disc�pulo de Herberto Sales. A primeira vis�o que tive dele foi a de um velho mulato gorducho, sentado a um canto no lobby do Hotel Gl�ria com um livro e um caderninho. O livro era um volume de Proust. No caderninho Herberto anotava, com uma caligrafia mi�da, as solu��es verbais que pudesse aproveitar. Poucos autores brasileiros, dizia Otto Maria Carpeaux, tiveram uma consci�ncia art�stica t�o desperta, t�o aguda, t�o esfor�ada quanto Herberto Sales. Aprendi tamb�m com o pr�prio Carpeaux, do qual li praticamente tudo o que publicou em portugu�s. Ele n�o era um visual, mas um auditivo. N�o nos fazia ver as coisas, mas adivinh�-las pela sua repercuss�o em �pocas e almas. Ele tinha a arte camer�stica de, num breve artigo, introduzir sutilmente um tema, desenvolv�-lo, faz�-lo ressoar em muitas oitavas e resolv�-lo rapidamente, nas linhas finais, com uma �coda� abrupta e estonteante. Ningu�m, entre n�s, dominou como ele a t�cnica do ensaio breve, condensa��o po�tica de controv�rsias cient�ficas enormemente complexas. A Nelson Rodrigues tamb�m devo muito. Dois t�tulos condensam toda a sua arte de escrever: �A vida como ela � e �O �bvio ululante�. O segredo do seu estilo � a aud�cia de dizer as coisas da maneira mais direta e corriqueira, transfigurando o prosaico em s�mbolo. N�o encontro coisa similar sen�o em P�o Baroja e Julien Green, embora neste sem nada do cinismo de Nelson, naquele com um cinismo diferente, mais frio e resignado. Mas a arte de resumir todo um argumento numa frase breve, de impacto brutal -- que tantos me condenam como se fosse prova de n�o sei que sentimentos ruins -- aprendi mesmo foi com tr�s santos: S. Paulo Ap�stolo, Sto. Agostinho e S. Bernardo. Tudo tem um pre�o. Ningu�m pode imitar os santos, nem mesmo em literatura, sem escandalizar uma intelectualidade p�-de-arroz. Dos autores estrangeiros do s�culo XX, al�m de Baroja e Green, os que mais me ensinaram foram Ortega y Gasset e Bernanos. Ortega � de longe o maior prosador da l�ngua espanhola, sem similares nela ou em qualquer outra pela sua for�a de fazer ver aquilo de que fala. Na verdade, mais que fazer ver. Ele pr�prio comparava a for�a aliciante do seu estilo a um punho que saltasse da p�gina e agarrasse o leitor pela goela, obrigando-o a envolver-se na discuss�o como se fosse problema pessoal. Efeito parecido despertam as p�ginas de Bernanos, mas com um �pathos� de moralista encolerizado que falta por completo ao am�vel e gentil Ortega. Como escritor de livros de filosofia tive de passar tamb�m pelos problemas da exposi��o filos�fica, mais complexos, do ponto de vista t�cnico-liter�rio, do que em geral se imagina. Para mim, o maior expositor filos�fico de todos os tempos (n�o o maior fil�sofo, � claro) foi �ric Weil. Nos seus escritos, a constru��o abstrata eleva-se �s alturas de uma realiza��o est�tica, mas de uma est�tica que, em vez de se superpor como um adorno ao pensamento conceitual, � encarna��o direta do pr�prio esp�rito filos�fico. A for�a do seu estilo � a beleza da raz�o quando alcan�a o plano mais alto da pura necessidade metaf�sica. Apenas, para apreci�-la, � preciso ter desenvolvido o senso dessa necessidade, que falta por completo �s mentes grosseiras, divididas entre o caos emp�rico e o formalismo l�gico vazio. A estas o vigor da prova pode dar a impress�o de um autoritarismo dogm�tico, de uma imposi��o da vontade, quando ela vem precisamente do contr�rio, da total rendi��o da vontade ante aquilo que, simplesmente, � o que �. Virtudes similares, em grau menor, encontro em Edmund Husserl e Louis Lavelle, com a ressalva de que este insiste demais no que j� demonstrou e aquele abusa dos termos t�cnicos em prol da brevidade que, como j� dizia Hor�cio, se op�e � clareza. O grande expositor filos�fico nada tem de �did�tico�. A filosofia, sendo educa��o em sua mais �ntima ess�ncia, � por isto mesmo metadid�tica, n�o havendo nela a possibilidade de uma seria��o graduada do mais f�cil para o mais dif�cil. Em filosofia a melhor maneira de dizer � aquela que encarne da maneira mais direta e fiel o pr�prio m�todo filos�fico, e o m�todo filos�fico melhor � o que mais eficazmente apreenda a coisa da qual se fala, sem nada acrescentar � sua simplicidade ou subtrair da sua complexidade. N�o se pode falar legitimamente de filosofia sen�o desde um ponto de vista filos�fico. N�o h� quadro de refer�ncia externo desde o qual se possa �compreender� uma filosofia, pela simples raz�o de que a filosofia � a arte de montar os quadros de refer�ncia de toda compreens�o. Por isso, a �divulga��o filos�fica� acaba sendo, quase sempre, fraude; e os melhores escritos filos�ficos quase nunca parecem bons a quem os julgue de fora, com crit�rios unilateralmente �liter�rios�.
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