De Bobbio a Bernanos
Olavo de Carvalho
Este século começou com a proclamação quase universal do fim das democracias e, após uma sucessão de experiências ditatoriais com um saldo de quase 200 milhões de mortos, termina com o universal reconhecimento de que o melhor é a gente ir tratando de gostar da democracia mesmo. Pela primeira vez na história dos tempos modernos a parte falante da Humanidade parece ter entrado num acordo. Embora ainda haja ditaduras aqui e ali, a idéia de ditadura perdeu toda respeitabilidade intelectual, e acredita-se, com platônico otimismo, que aquilo que desaparece do céu das idéias deve também desaparecer deste baixo mundo mais cedo ou mais tarde. E, embora ninguém atribua às atuais democracias a virtude da perfeição, há um consenso geral que Norberto Bobbio resumiu com uma sentença lapidar: �A única solução para os males da democracia é mais democracia.� Mas será essa a fórmula de um consenso ou a fórmula de um problema? Em primeiro lugar, que é �mais democracia�? Um liberal acha que é menos intervenção do Estado na economia; um social-democrata acha que é mais proteção do Estado aos pobres e desamparados. Assim, não apenas se reedita o velho confronto de capitalismo e socialismo, ambos com o nome de democracia, mas se chega no fim a um beco sem saída, porque para realizar a primeira alternativa é preciso ampliar o controle estatal da vida privada (no mínimo para que o Estado desprovido de seu fardo econômico adquira novas funções que legitimem sua existência), e para realizar a segunda é preciso aumentar os impostos e inflar a burocracia estatal até paralisar a economia e tornar os pobres ainda mais desamparados. Em segundo lugar, há boas razões para duvidar que �mais democracia� seja ainda democracia. A democracia não é como um pão, que cresce sem perder a homogeneidade: à medida que ela se expande, sua natureza vai mudando até converter-se no seu contrário. O exemplo mais característico � mas não o único, certamente � é o que se passa com a �democratização da cultura�. Num primeiro momento, democratizar a cultura é distribuir generosamente às massas os chamados �bens culturais�, antes reservados, segundo se diz, a uma elite. Num segundo momento, exige-se que as massas tenham também o direito de decidir o que é e o que não é um bem cultural. Aí a situação se inverte: oferecer às massas os bens de elite já não é praticar a democracia: é lançar à cara do povo um insulto paternalista. As camadas populares, afirma-se, têm direito à �sua própria cultura�, na qual a música rap pode ser, eventualmente, preferível a Bach. A intelectualidade entrega-se então a toda sorte de teorizações destinadas a provar que os bens superiores antes cobiçados pela massa não têm, no fim das contas, mais valor do que tudo o que a massa já possuía antes de conquistá-los. E, quando enfim a antiga diferença entre cultura de elite e cultura de massas parece restabelecida sob o novo e reconfortante pretexto da relatividade, os intelectuais ficam mais revoltados ainda, ao descobrir que todos os bens, equalizados pelo universal relativismo, se transformaram em puras mercadorias sem valor próprio: Bach tornou-se fundo musical para anúncios de calcinhas e o rap, com a venda de discos, gerou uma nova elite de milionários, cínicos e prepotentes como a elite mais antiga jamais teria ousado ser. Idêntico processo repete-se nos domínios da educação, da moral e até mesmo da economia, onde cada nova leva de beneficiários do progresso se apega a seus novos privilégios com uma avareza e uma violência desconhecida das elites mais velhas: o fascismo surgiu entre as novas classes médias criadas pela democracia capitalista, e a Nomenklatura soviética, a mais ciumenta das classes dominantes que já existiu neste mundo, nasceu da ascensão de soldados e operários na hierarquia do Partido. Em terceiro lugar, vem talvez o perigo mais grave: um consenso em favor da democracia só é promissor em aparência, porque a democracia, por definição, consiste em prescindir de todo consenso. Democracia não é concórdia: é uma maneira inteligente de administrar a discórdia. E o clamor universal por �mais democracia�, na medida mesma em que se afirma como um consenso, já dá sinais de não poder suportar nenhuma voz discordante. Assim, há razões para temer que, se o século 20 começou pedindo ditaduras e terminou por exigir a democracia, o novo século acabe por seguir o trajeto precisamente inverso. Afinal, dizia Bernanos, a democracia não é o oposto da ditadura: é a causa dela.
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