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Debatedores brasileiros

Olavo de Carvalho
Di�rio do Com�rcio, 20 de agosto de 2012

 

Se h� uma coisa que brasileiro gosta, � de discutir. Gosta principalmente de escavar contradi��es no discurso alheio, exibindo-as com o ar triunfante de quem pegou o advers�rio de cal�as na m�o. O nome dos que se dedicam a isso � legi�o. Valem-se, para tanto, de no��es elementares de l�gica, que lhes revelam os segredos da coer�ncia silog�stica e lhes permitem facilmente perceber onde as conseq��ncias n�o se seguem das premissas ou clamam, coitadinhas, por uma premissa faltante. Com base nisso o discutidor pode, sem qualquer inibi��o, jogar no rosto do oponente – ou v�tima – as acusa��es de “sofisma” e “fal�cia”, palavras que hoje em dia est�o entre as mais populares nos debates eletr�nicos. A elas acrescentam-se, para piorar as coisas, os nomes dos vinte e sete estratagemas er�sticos de Arthur Schopenhouer, que tive a infeliz id�ia de publicar e comentar em portugu�s, na ilus�o de que os leitores os usariam para corrigir-se a si mesmos em vez de atormentar seus vizinhos.

Num momento em que cada um se nomeia fiscal infal�vel da coer�ncia alheia, cabe lembrar aos distintos que o pr�prio Arist�teles, inventor ou primeiro formulador das regras da l�gica e das Refuta��es Sof�sticas, advertia que esses instrumentos de nada valiam sem um longo adestramento preliminar nas artes da linguagem e no exerc�cio da compreens�o. Com muita prud�ncia, ele antep�s ao aprendizado da silog�stica (e da sua irm� desnaturada, a sof�stica), os tratados sobre a interpreta��o, as categorias (ou tiposde predicados), os antepredicamentos (ou n�veis de predica��o), a psicologia do discurso (ou ret�rica) e a arte de distinguir entre as contradi��es reais e aparentes (a t�pica, ou dial�tica). No topo de tudo isto foi que ele colocou a t�cnica do discurso cient�fico coerente, � qual deu o nome de anal�tica, mais tarde chamada de “l�gica”.

Saltando sobre todo esse aprendizado preliminar, como quem se al�asse direto do t�rreo ao quinto andar sem passar pelas escadas nem pelo elevador, nossos debatedores acreditam poder medir e julgar a coer�ncia do discurso alheio sem precisar ter a percep��o correta das nuances de sentido, dos n�veis de predica��o (categ�rico, modal, hipot�tico, etc), das varia��es de significado conforme o p�blico e a situa��o dediscurso e, por fim, do jogo dial�tico onde aquilo que parece absurdo sob certo aspecto � uma verdade �bvia sob outro aspecto.

A l�gica � uma esp�cie de geometria euclidiana do discurso. Arist�teles ensina que ela s� se aplica diretamente ao discurso cient�fico formal, onde as nuances, as cores, as ambig�idades po�ticas e as figuras de linguagem da fala corrente e da escrita liter�ria j� foram eliminadas por um �rduo trabalho de depura��o conceitual e de redu��o detudo a significados est�veis e uniformes.

Ignorando essa obviedade, que lhes jogaria nas costas o pesad�ssimo encargo deum s�rio adestramento nas artes da linguagem, os l�gicos do territ�rio blogu�stico, bem como do Orkut e do Facebook, amealham triunfos f�ceis, mas perfeitamente ilus�rios, apontando “fal�cias” e “sofismas” naquilo que n�o entendem.

Fazem isso porque as regras da l�gica, malgrado a obscuridade da sua formula��o t�cnica expl�cita, s�o aquilo que existe de mais simples, esquem�tico e at� instintivo no pensamento humano, algo como a aritm�tica elementar, onde as quatro opera��es, uma vez apreendidas, podem continuar sendo aplicadas automaticamente a n�meros cada vez maiores, sem necessidade de nenhum aprendizado suplementar. Embora esteja, do ponto de vista da coer�ncia formal, no topo da hierarquia dos discursos, a l�gica corresponde, na verdade, ao n�vel mais tosco e elementar do pensamento. Um gato, quando se prepara para um salto, avalia a propor��o entre a altura do obst�culo e a for�a de empuxe que suas pernas ter�o de investir no empreendimento. Isso corresponde, esquematicamente, a uma equa��o trigonom�trica, que � um tipo de racioc�nio silog�stico. Essa habilidade o gato compartilha com outros animais espertos, como os c�es e os le�es, mas tamb�m com alguns que n�o s�o t�o not�veis pela intelig�ncia, como os cavalos e as ovelhas. Mas nenhum gato jamais conseguiu distinguir uma figura de linguagem de um conceito formal, apreender nuances de sentido conforme a rela��o entre falante e ouvinte e muito menos lidar com duas proposi��es contradit�rias que s�o ambas verdadeiras em sentidos diferentes. Eis por que os debatedores intern�ticos preferem se ater ao automatismo f�cil das regras l�gicas, aplicando-as de modo raso e sonso a discursos polivalentes e poliss�micos que, para se prestar a isso, teriam de passar antes por um complexo e dificultoso trabalho deinterpreta��o liter�ria, compreens�o em profundidade e formaliza��o conceitual. Trabalho que �s vezes resulta completamente imposs�vel.

Esse � o motivo, tamb�m, pelo qual aconselho a meus alunos que n�o entrem no estudo das �reas filos�ficas mais t�cnicas e mais dependentes da l�gica antes de adquirir uma s�lida cultura liter�ria universal, o dom�nio de v�rios idiomas, um apurado senso das figuras de linguagem e, enfim, uma compreens�o adequada do que l�em. Como j� se v� pelos erros de gram�tica que pululam nas suas senten�as como girinos em volta da mam�e sapo, os fiscais da coer�ncia alheia se abst�m dessa precau��o e acreditam poder abrir caminho no mundo dos debates intelectuais armados t�o somente deautomatismos l�gicos ao alcance de um gato ou de um jumento.


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