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Longa noite

Olavo de Carvalho
Di�rio do Com�rcio, 4 de junho de 2012

 

Se h� uma coisa que, quanto mais voc� perde, menos sente falta dela, � a intelig�ncia. Uso a palavra n�o no sentido vulgar de habilidadezinhas mensur�veis, mas no de percep��o da realidade. Quanto menos voc� percebe, menos percebe que n�o percebe. Quase que invariavelmente, a perda vem por isso acompanhada de um sentimento de plenitude, de seguran�a, quase de infalibilidade. � claro: quanto mais burro voc� fica, menos atina com as contradi��es e dificuldades, e tudo lhe parece explic�vel em meia d�zia de palavras. Se as palavras v�m com a chancela da intelligentzia falante, ent�o, meu filho, nada mais no mundo pode se opor � for�a avassaladora dos chav�es que, num estalar de dedos, respondem a todas as perguntas, dirimem todas as d�vidas e instalam, com soberana tranq�ilidade, o imp�rio do consenso final. Refiro-me especialmente a express�es como “desigualdade social”, “diversidade”, “fundamentalismo”, “direitos”, “extremismo”, “intoler�ncia”, “tortura”, “medieval”, “racismo”, “ditadura”, “cren�a religiosa” e similares. O leitor pode, se quiser, completar o repert�rio mediante breve consulta �s se��es de opini�o da chamada “grande imprensa”. Na mais ousada das hip�teses, n�o passam de uns vinte ou trinta voc�bulos. Existe algo, entre os c�us e a terra, que esses termos n�o exprimam com perfei��o, n�o expliquem nos seus mais m�nimos detalhes, n�o transmutem em conclus�es inabal�veis que s� um louco ousaria contestar? Em torno deles gira a mente brasileira hoje em dia, incapaz de conceber o que quer que esteja para al�m do que esse ex�guo vocabul�rio pode abranger.

Que essas certezas sejam ostentadas por pessoas que ao mesmo tempo fazem profiss�o-de-f� relativista e at� mesmo neguem peremptoriamente a exist�ncia de verdades objetivas, eis uma prova suplementar daquilo que eu vinha dizendo: quanto menos voc� entende, menos entende que n�o entende. Ao inverso da economia, onde vigora o princ�pio da escassez, na esfera da intelig�ncia rege o princ�pio da abund�ncia: quanto mais falta, mais d� a impress�o de que sobra. A estupidez completa, se t�o sublime ideal se pudesse atingir, corresponderia assim � plena auto-satisfa��o universal.

A mais eloq�ente ind�cio � o fato de que, num pa�s onde h� trinta anos n�o se publica um romance, uma novela, uma pe�a de teatro que valha a pena ler, ningu�m d� pela falta de uma coisa outrora t�o abundante, t�o rica nestas plagas, que era a – como se chamava mesmo? – “literatura”. Digo que essa entidade sumiu porque – creiam – n�o cesso de procur�-la. Vasculho cat�logos de editoras, reviro a internet em busca de sites liter�rios, leio dezenas de obras de fic��o e poesias que seus autores t�m o sadismo de me enviar, e no fim das contas encontrei o qu�? Nada. Tudo � monstruosamente bobo, vazio, presun�oso e escrito em l�ngua de orangotangos. No m�ximo aponta aqui e ali algum talento an�mico, que para vingar precisaria ainda de muita leitura, experi�ncia da vida e uns bons tabefes.

Mas, assim como n�o vejo nenhuma obra de literatura imaginativa que mere�a aten��o, muito menos deparo, nas resenhas de jornais e nas revistas “de cultura” que n�o cessam de aparecer, com algu�m que se d� conta do descalabro, do supremo esc�ndalo interectual que � um pa�s de quase duzentos milh�es de habitantes, com uma universidade em cada esquina, sem nenhuma literatura superior. Ningu�m se mostra assustado, ningu�m reclama, ningu�m diz um “ai”. Todos parecem sentir que a casa est� na mais perfeita ordem, e alguns at� s�o loucos o bastante para acreditar que o grande sinal de sa�de cultural do pa�s s�o eles pr�prios. Pois n�o houve at� um ministro da Cultura que assegurou estar a nossa produ��o cultural atravessando um dos seus momentos mais brilhantes, mais criativos? Media, decerto, pelo n�mero de shows de funk.

Est�o vendo como, no reino da intelig�ncia, a escassez � abund�ncia?

Mas o pior n�o � a pen�ria quantitativa.

Da Independ�ncia at� os anos 70 do s�culo XX, a hist�ria social e psicol�gica do Brasil aparecia, transl�cida, na literatura nacional. Lendo os livros de Machado de Assis, Raul Pomp�ia, Lima Barreto, Ant�nio de Alc�ntara Machado, Graciliano Ramos, Jos� Lins do Rego, Jorge Amado, Marques Rebelo, Jos� Geraldo Vieira, Ciro dos Anjos, Oct�vio de Faria, Ann�bal M. Machado e tantos outros, obt�nhamos a imagem v�vida da experi�ncia de ser brasileiro, refletida com toda a variedade das suas manifesta��es regionais e epocais e com toda a complexidade das rela��es entre alma e Hist�ria, indiv�duo e sociedade.

A partir da d�cada de 80, a literatura brasileira desaparece. A complexa e rica imagem da vida nacional que se via nas obras dos melhores escritores � ent�o substitu�da por um sistema de estere�tipos, vulgares e mec�nicos at� o desespero, infinitamente repetidos pela TV, pelo jornalismo, pelos livros did�ticos e pelos discursos dos pol�ticos.

No mesmo per�odo, o Brasil sofreu mudan�as hist�rico-culturais avassaladoras, que, sem o testemunho da literatura, n�o podem se integrar no imagin�rio coletivo nem muito menos tornar-se objeto de reflex�o. Foram trinta anos de metamorfoses vividas em estado de sono hipn�tico, talvez irrecuper�veis para sempre.

O tom de certeza definitiva com que qualquer bobagem politicamente correta se apresenta hoje como o nec plus ultra da intelig�ncia humana jamais teria se tornado poss�vel sem esse longo per�odo de entorpecimento e de trevas, essa longa noite da intelig�ncia, ao fim da qual estava perdida a simples capacidade de discernir entre o normal e o aberrante, o sensato e o absurdo, a obviedade gritante e o ilogismo impenetr�vel.


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