Sapientiam Autem Non Vincit Malitia - Foto da águia: Donald Mathis Mande um e-mail para o Olavo Links Textos Informações Página principal

 

 

 

 

 

 

 

A ordem dos fatores

Olavo de Carvalho
Di�rio do Com�rcio, 21 de maio de 2012

 


No estudo admir�vel que publicou em 1994 sob o t�tulo The Soviet Tragedy, Martin Malia pergunta por que os soviet�logos ocidentais, t�o prestigiosos, t�o bem pagos, t�o dotados de amplos meios de investiga��o, n�o atinaram nem por um momento com a queda iminente da URSS, e ao contr�rio continuaram prevendo, at� a v�spera do desenlace, uma nova era de progresso espetacular para o gigante de p�s de barro.

O caso mais pat�tico foi o de Paul Kennedy, historiador da Yale University, cujo livro Ascens�o e Queda das Grandes Pot�ncias, anunciando para breve a queda dos EUA e a ascens�o da URSS como pot�ncia dominante, virou um best-seller mundial, foi traduzido em 23 idiomas e celebrado como o nec plus ultra em mat�ria de an�lise estrat�gica. Isso foi em 1987: tr�s anos antes que o curso das coisas o desmentisse fragorosamente, provando, pela mil�sima vez, que o aplauso universal da m�dia reflete apenas o entusiasmo da uma multid�o de cegos tagarelas pelos cegos ainda mais tagarelas que os guiam.

Em contraste, assinala Malia, os dissidentes internos, Bukovski, Soljen�tsin, Zinoviev e tantos outros, nunca cessaram de insistir que o comunismo era irreform�vel, que sua autodestrui��o era apenas quest�o de tempo, mas eram recebidos com ceticismo no ambiente acad�mico ocidental, que os via como sonhadores incapazes de atinar com o poder de auto-renova��o do regime sovi�tico.

Pior ainda, os desertores da KGB e do servi�o militar sovi�tico, que traziam inside information da melhor qualidade, anunciando que o sistema estava consciente de ter de desmantelar-se at� mesmo para salvar o que restasse do movimento comunista mundial, foram desprezados como “te�ricos da conspira��o” pelos servi�os de intelig�ncia ocidentais, isto �, pelos mais autorizados soviet�logos do mundo, porque os diagn�sticos que ofereciam vinham s� dos altos c�rculos governantes, sem levar em conta – alegava-se – as realidades sociais e econ�micas do regime. O mais brilhante desses desertores, Anatolyi Golytsin, cujas previs�es acabariam depois se revelando acertadas em pelo menos 94 por cento, foi o mais criticado e ridicularizado pelos bem-pensantes.

Martin Malia pergunta-se como foi poss�vel que erros t�o colossais se tornassem verdades indiscut�veis para toda uma elite acad�mica espalhada pelas maiores universidades, institutos de pesquisa, think tanks e servi�os da intelig�ncia da Europa e dos EUA, praticamente sem uma �nica voz discordante.

Ele poderia ter respondido, genericamente, que a principal tarefa do consenso acad�mico h� duzentos anos tem sido precisamente a de impor a autoridade do erro como padr�o supremo de racionalidade em todos os campos do conhecimento humano, e acabar sendo sempre desmentido por um ou dois g�nios isolados, teimosos e mal subsidiados.

Mas ele preferiu dar uma ilustra��o mais detalhada dessa resposta.

Os estudos sovietol�gicos no Ocidente, no seu empenho de tornar-se cientificamente respeit�veis, seguiram em linhas gerais as duas tradi��es mais badaladas no campo da sociologia hist�rica, o positivismo e o marxismo. Segundo essas duas escolas, o rumo das coisas na esfera pol�tico-ideol�gica �, ao menos a longo prazo, determinado por fatores mais b�sicos de ordem econ�mico-social.

Esse princ�pio servia portanto, uniformemente, para analisar tanto as sociedades ocidentais como a sovi�tica. Dele os soviet�logos conclu�am que o “potencial de crescimento” da sociedade sovi�tica terminaria por prevalecer sobre a rigidez ideol�gica da elite governante, for�ando-a modernizar o regime para liberar, como diria Marx, as “for�as produtivas”.

Nesse diagn�stico, diz Malia, n�o contavam com dois fatores: a for�a avassaladora da elite revolucion�ria, que ao longo de seis d�cadas dilu�ra e remoldara a seu belprazer uma sociedade passiva e inerme, e a rigidez imut�vel das institui��es de controle governamental criadas por essa mesma elite, capazes, no m�ximo, de variar a dose de viol�ncia repressiva que aplicavam a cada momento, por�m jamais de reformar-se de alto a baixo. Na URSS, em suma, n�o vigorava a hierarquia marxista de uma “infra-estrutura” econ�mico-social a determinar os rumos da “superestrutura” ideol�gica e pol�tica. A superestrutura havia se fortalecido e enrijecido a tal ponto, que j� n�o podia refletir as mudan�as da infra-estrutura: o regime sovi�tico s� podia eternizar-se, estrangulando a sociedade, ou suicidar-se para deixar a sociedade viver. O plano reformista de Gorbachov fracassou e o governo sovi�tico foi repentinamente suicidado por um b�bado corajoso. Quod erat demonstrandum.

Ao consentir em usar as categorias de infra-estrutura e superestrutura como instrumentos essenciais de an�lise do fen�meno sovi�tico, os soviet�logos ocidentais mostraram ter-se deixado hipnotizar pelos esquemas mentais do inimigo, tentando apenas us�-los com signo pol�tico invertido. Isso nunca funciona.

Os dissidentes, ao contr�rio, jogaram o marxismo fora junto com a discurseira oficial do Kremlin, e buscaram categorias de pensamento radicalmente novas, inspiradas em parte na filosofia da religi�o, em parte na l�gica matem�tica, em na pr�pria tradi��o liter�ria russa, chegando a desvendar os mais �ntimos segredos do sistema sovi�tico ao ponto de diagnosticar com clareza o seu estado terminal.

Nossos liberais e conservadores teriam algo a aprender com essa li��o, mas quem pode com gente de casca grossa e miolo mole? Metade deles acredita que a economia move o mundo (como se hoje em dia n�o fosse ela o mais vol�til dos fatores), a outra metade imagina que o melhor que tem a fazer � macaquear o programa cultural da esquerda.


Bookmark and Share

Comente este artigo no f�rum:

http://www.seminariodefilosofia.org/forum/15