|
O Sul no Norte
Olavo de Carvalho
Se você quer saber qual será a política de amanhã, leia as publicações acadêmicas de hoje: nada se grita nas praças que antes não se tenha sussurrado em sala de aula, longe das atenções dos “analistas políticos” da mídia, sempre os últimos a saber. O prazo de maturação em que as idéias dos professores se transformam em moda política é de uns vinte e cinco ou trinta anos, o tempo de uma troca de gerações. Decorridos alguns meses do desmantelamento da URSS, um amigo meu, militar de alta patente, veio entusiasmado me mostrar uns trabalhos publicados em revistas de estudos estratégicos, que falavam de uma nova divisão geopolítica do mundo: em vez do conflito Leste-Oeste entre regimes comunistas e capitalistas, tínhamos então a disputa Norte-Sul entre países ricos e países pobres. Em linguagem popularizada, dramatizada em slogans e chavões de fácil repetição, a tese ressurge agora pela boca de dois entre os mais notórios garotos-propaganda do esquerdismo internacional: o escritor uruguaio Eduardo Galeano e o deputado suíço Jean Ziegler (v. http://www.youtube.com/watch?v=MyxO-gL_ZnM). Falta só um pouquinho, portanto, para que a guerra Norte-Sul se consolide como verdade de evangelho, repetida em todos os jornais e botequins do universo pela “parcela mais esclarecida da população”. No entanto, a teoria não se tornou nem um pouquinho melhor nesse ínterim. Ao contrário, a falsidade e a má intenção que a inspiravam no começo tornaram-se ainda mais patentes. Não preciso, por isso, senão repetir aqui o que naqueles dias remotos expliquei ao meu estupefato amigo. Primeiro: Desníveis econômicos entre nações não podem, por si, ser causa de conflitos políticos ou de guerras sem que uma longa e complexa manobra estratégica e propagandística os converta nisso. Mas mesmo neste caso não se pode dizer que a pobreza seja a “causa” da disputa: a causa verdadeira é a ação política deliberada que a usou eficazmente como pretexto. E notem que não é do dia para a noite que se infunde na cabeça de um povo empobrecido por oligarquias ociosas e corruptas a idéia de que todos os seus males vêm do estrangeiro. Segundo: Política e guerra custam muito dinheiro, especialmente numa era de tecnologia avançada, e nenhuma nação pobre se arriscaria a enfrentar os vizinhos mais prósperos, nem mesmo no campo puramente político-diplomático, se não tivesse por trás um amigo rico e poderoso a instigá-la e financiá-la para isso. Mas neste caso o verdadeiro agente não seria a nação pobre e sim o aliado rico, empenhado em bater com mão alugada. Era exatamente a situação que se havia observado nas guerras da Coréia e do Vietnã, onde os americanos não se batiam contra tropas locais esfarrapadas, mas contra o bloco comunista inteiro que as movia como peças de xadrez. Havia também a possibilidade de tratar-se de uma falsa nação pobre, isto é, uma nação rica com povo pobre, cujas oligarquias exploradoras tentassem aliviar conflitos internos canalizando o ódio popular contra bodes expiatórios estrangeiros, tal como faz hoje o Irã. Mas mesmo neste caso o dedo do aliado rico estaria lá, orientando e dirigindo tudo mais ou menos discretamente. Terceiro: A teoria original de Marx enfocava a luta de classes na escala das nações individuais, cada uma com sua burguesia e seu proletariado supostamente em antagonismo perpétuo. Mas já na década de 30 Josef Stálin lançou a idéia de enfocar os conflitos internacionais, reais ou possíveis, como lutas de classes, as nações pobres no papel de “proletariado”, as ricas no de “burguesia”. Com a ajuda de centenas de milhares de agentes espalhados pelo mundo, e com aquela desenvoltura que os comunistas têm de tomar figuras de linguagem como se fossem descrições científicas da realidade, logo a idéia se universalizou sob a forma do “terceiromundismo”. Na época, só gente muito burra ignorava que as nações pobres alegadamente neutras, mas dedicadas a uma política anti-ocidental sistemática, eram manipuladas pelo bloco comunista. Sabendo-se que a queda da URSS não modificou substancialmente o esquema de poder na Rússia nem atenuou em nada a ação do movimento comunista internacional, a teoria Norte-Sul não passava em 1990, como não passa hoje, de uma reedição melhorada do “terceiromundismo” stalinista, a ser acionada em condições estratégicas mais que favoráveis. De um lado, o triunfalismo ocidental empenhado em celebrar afoitamente a “vitória na guerra fria” encobriu sob um manto de confortável invisibilidade a ação comunista internacional, dando-lhe o descanso necessário para se rearticular em novo formato (que já expliquei em inúmeros artigos, por exemplo /semana/030309zh.htm, /semana/110718dc.html e /semana/060724dc.html) e reaparecer no mundo com identidade trocada, sem um centro de comando aparente e dispensada, portanto, de arcar com qualquer responsabilidade histórica pelos crimes da URSS e da China. De outro lado, o processo mesmo da “globalização” e o fortalecimento inaudito dos organismos internacionais como núcleos de um governo mundial em formação determinaram claramente o desmantelamento da indústria norte-americana, a transformação maciça da imigração forçada em arma de dissolução das soberanias nacionais no Ocidente, o desgaste dos EUA e da Europa em sucessivas crises econômicas e a emergência da China como potência concorrente ameaçadora. Que momento melhor haveria para um ataque geral ao Ocidente sob o pretexto de guerra dos pobres contra os ricos, do “Sul” contra “o Norte”? Quem, numa hora dessas, se lembrará de observar que os agentes principais do processo – Rússia, China, Irã – ficam no Norte?
|
|