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Truque sujo - II
Olavo de Carvalho
Atribuir a ação de uma frase ao sujeito de outra não foi o único truque usado pelos IGnóbeis. A isso eles acrescentaram mais três expedientes: embelezar a vítima para realçar a feiúra do crime, ampliar desmesuradamente o sentido de uma frase minha para fazer o óbvio parecer uma absurdidade ofensiva, e tomar o imaginário como fato consumado para dar a uma invencionice caluniosa e pueril os ares de coisa certa e provada. Vamos por partes. A vítima assassinada a pancadas e facadas era um membro da Devastação Punk, uma das gangues mais violentas de São Paulo. Era, confessadamente, um rematado brigão, que andava armado de soco inglês e estava sendo investigado pela polícia por um homicídio cometido em 2007. Morreu no curso de uma pancadaria infernal, na qual estiveram envolvidas duas centenas de pessoas, e até agora não se sabe precisamente quem o matou. O IG limpa a ficha da criatura, apresentando-a simplesmente como “um estudante”. Um inocente estudante assassinado por skinheads é bem diferente de um membro de gangue que se dá mal numa briga de rua, esfaqueado por alguém a quem ele não estava propriamente tratando com polidez. Lá para diante, no meio da matéria, vê-se que o cidadão era de fato um punk. Mas a violência punk também aparece embelezada, desculpada como mera “reação aos grupos de intolerância” – como se punks não tivessem sua própria cultura da violência desde muito antes de haver qualquer “grupo de intolerância” organizado no país. Eis alguns exemplos de como esses idealistas combatem a intolerância: 22 de junho. Punks esfaquearam e mataram o garçom John Clayton Moreira Batista, nos Jardins, por ele não ter lhes emprestado um isqueiro. Quatro adultos e quatro adolescentes – que fariam parte do grupo Devastação Punk – foram detidos pela polícia. 21 de outubro. O menor G. C., 17 anos, foi espancado por um grupo de 25 punks, que saíam de uma casa noturna no Bom Retiro. Nove foram detidos. 14 de outubro. O balconista Jaílton de Souza Pacheco foi esfaqueado e morto, no centro, por três jovens que se identificaram como punks. Motivo: ele se recusou a fazer um desconto na venda de um pedaço de pizza. E assim por diante. Confiram na edição 2032 da Veja. Para Alves e Galhardo, esses e outros feitos foram cometidos na pura intenção de defender as instituições democráticas contra tiranos fascistas skinheads que não emprestam isqueiros e recusam descontos em pizzas. Uma vez falsificadas a cena e a história do crime, o IG está preparado para acentuar os traços monstruosos do “instrutor teórico” que teria, por meios mágicos que veremos adiante, inspirado o delito. Olavo de Carvalho, segundo Alves e Galhardo, é um malvado que “prega a pena de morte para comunistas”. Que é que se entende imediatamente por essa expressão? Olavo de Carvalho deseja que os comunistas sejam condenados à pena de morte por serem comunistas, isto é, por delito de opinião. Imaginem as dimensões do banho de sangue, se essa idéia fosse levada à prática. Teria eu pregado semelhante descalabro? Como não me considero imune a momentos de estupidez, e como no improviso veloz de um programa de rádio é sempre possível soltar alguma asneira grossa, não me inocentei a priori. Fui ouvir a gravação do programa, pronto a retificar quaisquer palavras injustas caso ali as tivesse proferido. Pois bem. O que eu disse naquele programa é que os líderes políticos e intelectuais do movimento comunista deveriam ser submetidos a julgamento por crimes contra a humanidade, tal como se fizera em Nuremberg com os próceres nazistas então remanescentes e tal como a pequena e brava nação cambojana está fazendo com os chefes do Khmer Vermelho. Teria o tribunal de Nuremberg julgado e condenado “nazistas”, genericamente? Isso teria levado à forca metade da Alemanha. Estaria o Camboja buscando a punição de “comunistas”, assim sem mais, por crime de ideologia? É óbvio que não. Do mesmo modo, o que sugeri naquele programa é que os líderes de governos admitidamente genocidas deveriam ser submetidos a julgamento e punidos, junto com os mais notórios, obstinados e impenitentes propagandistas e embelezadores mundiais de uma máquina de matar que havia liquidado cinco vezes mais gente do que a ditadura nazista. Por mais que se odeie a proposta – e ela não foi feita para afagar o ego de ninguém --, ela é bem diferente de “pregar a pena de morte para comunistas”. A imprecisão proposital opera prodígios. A troca do específico pelo genérico, pelas mãos de Alves e Galhardo, deu a uma óbvia e irrecusável exigência de justiça os ares de uma pregação demoníaca, de uma apologia do terror e do genocídio. Que mais se poderia esperar de falsários que convertem uma briga de gangues no assassinato brutal de um indefeso estudante? Vamos agora às duas organizações estudantis, cuja declaração de que recebem “instrução teórica” supostamente inspirada em mim foi transferida da boca deles para a dos skinheads. Desde logo, eu não conhecia nenhuma das duas e só fiquei sabendo delas pelo IG. Mas não preciso conhecê-las para saber que não se compõem de alunos meus, já que estes são formalmente proibidos, enquanto permanecem alunos, de associar-se a qualquer organização militante que seja (quatro mil membros do Seminário de Filosofia podem confirmar o que dezenas de gravações de aula comprovam). Se a Resistência Nacionalista e a UCC não recebem “instrução teórica” nem de mim pessoalmente, nem de meus alunos, nem de qualquer pessoa autorizada por mim, não têm nenhum direito de falar em meu nome ou de posar como praticantes de idéias minhas. Muito menos têm os dois IGnóbeis o direito de apresentá-las com essa identidade sem nem ao menos ter-me consultado a respeito – o que bem revela a mentalidade traiçoeira com que escreveram sua matéria no propósito ostensivo de me comprometer em atividades políticas que desaprovo por completo. Em todo caso, por estranha e errada que me pareça a política dessas duas organizações, ela não constitui crime algum, nem o IG as acusa disso. Elas só entraram na matéria porque são “de direita” e, como alguns skinheads também o são, ou pelo menos se diz que são, isso facilitava a Alves e Galhardo construir, por meio de uma dupla ponte de associações de idéias, um arremedo remoto de ligação entre eu e o movimento skinhead. A técnica da associação remota já é notória pela tortuosidade maliciosa e perversa com que imagina influências materialmente impossíveis, tratando-as como se fossem elos causais verdadeiros, criminalmente imputáveis. Quem quer que a empregue deveria ser expelido da profissão jornalística, no ato, por absoluta e patente falta de idoneidade. Quando a deputada democrata Danielle Giffords foi baleada junto com outras cinco pessoas, esquerdistas assanhados se apressaram em lançar a responsabilidade mental do crime sobre a governadora Sarah Palin, por ter utilizado, num cartaz de propaganda, a palavra “alvo” com referência ao 8º. Distrito do Arizona, onde viria a se dar o sangrento episódio (v. http://www.harpyness.com/2011/01/08/congresswoman-on-sarah-palins-target-list-murdered-at-political-event/). A técnica junguiana da associação de palavras, que em psiquiatria e psicologia clínica se usa para rastrear as fantasias subjetivas de doentes mentais, passa a servir aí como prova de ligações causais objetivas entre fatos do mundo real. Alvo? Tiro. Tiro? Atentado. Atentado? Danielle Giffords. Logo, Sarah Palin atirou em Danielle Giffords, quod erat demonstrandum. É a fantasia psicótica transmutada em lógica jurídica. Mas o site do IG não se contenta com lançar mão desse raciocínio perverso. Acrescenta-lhe um requinte que não teria ocorrido a nenhum acusador de Sarah Palin: ligar o crime à minha pessoa não por meio de uma cadeia de associações, mas sim de duas, encadeadas e superpostas para levar da causa hipotética remota à causa imaginária remotíssima – um truque sujo que, se usado com freqüência bastante, não deixará impune nenhum inocente.
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