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Filósofos no exílio
Olavo de Carvalho
O exílio voluntário ou forçado – mais freqüentemente voluntário – parece ser um destino mais comum entre os filósofos do que entre qualquer outro grupo de intelectuais criadores. Sócrates só não foi embora de Atenas porque achou que estava velho demais para aceitar essa oferta do tribunal que o condenou. Preferiu a morte. Platão retirou-se para uma cidade vizinha, na esperança de que suas idéias pudessem inspirar o governo local, e só voltou para Atenas porque o plano fracassou. Aristóteles passou praticamente toda a sua vida ativa longe da terra natal. Descartes não escreveu um único livro na França; tudo na Holanda, onde morou por vinte anos. Spinoza não saiu do país, mas correu para longe de Amsterdam, onde os rabinos o haviam condenado por heresia. John Locke escreveu sua obra principal em Paris, e David Hume foi redigir seu Tratado nas vizinhanças do colégio de La Flèche, o mesmo do qual Descartes procurara guardar distancia. Emil Cioran, espremido numa mansarda em Paris, implorava aos visitantes que não falassem romeno com ele, pois isso atrapalhava o esforço insano que ele desenvolvia para se tornar o maior prosador francês do século (conseguiu). E nem menciono a infinidade de filósofos que fugiram da perseguição comunista e nazista, indo se instalar em Paris, em Londres, na Flórida ou na Califórnia. A lista ultrapassaria de muito as dimensões deste artigo. Muitos deles, passado o perigo, não conseguiram se adaptar de novo no país de origem, preferindo permanecer para sempre na pátria adotiva. Em comparação, pintores, músicos e romancistas parecem necessitar da atmosfera nativa, longe da qual sentem definhar sua inspiração. Quem pode imaginar Dostoievski ou Tolstói afastados para sempre da Rússia, Dickens morando em Miami, Giovanni Verga sem a Sicília ou William Faulkner longe do seu querido e abominado Deep South? Talvez o símbolo mais característico da ligação do escritor com sua terra natal tenha sido George Webber, o herói de You Can’t Go Home Again, de Thomas Wolfe, que saiu buscando sua alma no vasto mundo e só a encontrou ao voltar para casa. Soljenitsin, liberto da opressão comunista depois de décadas de sofrimento, premiado e instalado num hotel suíço de cinco estrelas, queixava-se de que ali não podia escrever, porque não ouvia ninguém em volta falando russo. Toda regra, é claro, tem exceção. Kant jamais ultrapassou as fronteiras da sua pequena Koenigsberg, mas não sei se o faria caso tivesse saúde para isso. Benedetto Croce era tão apegado à sua Nápoles que, comentavam os amigos, conhecia cada pedra das ruas da cidade. Os dois maiores filósofos romenos – Petre Tsutsea e Constantin Noica – não saíram do pais: o primeiro ficou na cadeia, o segundo em prisão domiciliar. Não sei aonde teriam ido parar se a polícia relaxasse a vigilância. No mais, o exílio dos filósofos tem mesmo todo o jeito de ser uma constante, ou quase. Um motivo óbvio para isso é o impulso de manter distância da cultura natal para descontaminar-se dela por dentro e olhá-la com independência. Distância externa e interna, portanto. Toda filosofia tem pretensões de validade universal e, se alguma inspiração obtém do meio originário, logo busca se desvencilhar dele para entrar num diálogo com homens de todos os lugares e de todas as épocas. O exílio filosófico também não e só espacial, mas temporal. O filósofo não pode ser um mero “homem do seu tempo”: tem de abrir-se a influências vindas de séculos remotos, que o libertarão da prisão mental da sua época e, através dele, lançarão as sementes de um futuro às vezes bem longínquo. Sto. Tomas adquiriu sua formação mais de Aristóteles que de qualquer dos seus contemporâneos. Só veio a receber a atenção universal que merecia depois da Encíclica Aeterni Patris, de Leão XIII (1879). Leibniz deixou-se impregnar profundamente de uma filosofia escolástica que os homens do seu século desprezavam e julgavam extinta para sempre. Graças a isso, teve intuições cujo acerto magistral só a ciência do século XX viria confirmar. Martin Heidegger foi mais influenciado pelos pré-socraticos do que mesmo por seu mestre imediato, Edmund Husserl (ele próprio um exilado voluntário). E René Descartes, malgrado seus ocasionais arroubos de ineditismo, acabou mostrando um agudo senso da supratemporalidade ao confessar: “Os antigos peripatéticos não disseram uma palavra que não fosse nova, nem eu alguma que não fosse velha.”
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