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O gostos�o intelectual: curso intensivo

Olavo de Carvalho
Di�rio do Com�rcio, 7 de abril de 2011

 

Alguns leitores ficaram decepcionados com o meu artigo do dia 24 de mar�o (/semana/110324dc.html): acharam muito dif�ceis e trabalhosas as quatro receitas que lhes dei para tornar-se gostos�es intelectuais. Sentem-se como se eu tivesse frustrado o sonho de suas vidas. Escrevem-me cartas indignadas, exigem saber se existe uma t�cnica, uma via mais simples e r�pida, que possam percorrer em alguns segundos, de prefer�ncia sem levantar da poltrona, livres de cumprir aquelas exig�ncias oprimentes que os quatro clubes de gostos�es imp�em a seus novi�os para admiti-los, mediante duras provas, no c�rculo dos eleitos.

Pois bem, alegrem-se, irm�os. A coisa existe. N�o s� existe como � de dom�nio p�blico, sem �nus ou taxas de qualquer natureza. Milh�es de brasileiros t�m desfrutado de seus benef�cios, especialmente desde a d�cada de 60, quando o h�bito de pensar no assunto antes de falar veio sendo substitu�do, com vantagem, pela express�o imediata de prefer�ncias e repugn�ncias, t�o natural, t�o espont�nea quanto uma inocente flatul�ncia.

Prestem aten��o. N�o requer pr�tica nem habilidade. Em dois minutos voc�s aprender�o a t�cnica e poder�o us�-la -- se � que j� n�o a v�m usando sem sab�-lo -- com resultados infal�veis.

A f�rmula � a seguinte: invente duas cren�as opostas totalmente imagin�rias e igualmente boc�s, atribua-as a dois indiv�duos quaisquer (que provavelmente jamais ouviram falar delas) e declare-se superior a ambas. N�o � preciso explic�-las, nem discuti-las, nem provar que seus indigitados porta-vozes t�m mesmo algo a ver com elas. Apenas d� um nome a cada uma e afirme, peremptoriamente, que s�o duas bobagens antag�nicas, que voc� n�o cai num engodo nem no outro, que est� acima de correntes de opini�o, ideologias, estere�tipos, o escambau.

A proclama��o simples e direta de superioridade, desacompanhada dessa moldura de antagonismos, pode soar presun�osa e dar efeito negativo. Espremida entre duas alternativas abomin�veis (pouco importa que perfeitamente inexistentes), adquire uma nobreza, uma eleva��o, um ar de insight dial�tico que � uma coisa de louco, maninho. Experimente e observe a rea��o da plat�ia, todos se olhando uns aos outros e confessando: "Como foi que n�o pensamos nisso antes? Que coisa mais genial! N�s, aqui, atormentados num dilema insol�vel, e ent�o vem esse iluminado e nos liberta das falsas alternativas!"

Pode crer, a coisa funciona mesmo. Posso testemunhar isso com total isen��o precisamente porque, em vez de praticar a t�cnica, fui citado muitas vezes num dos pares de antagonismos e assim dei, malgr� moi, substanciais contribui��es � gl�ria das supera��es baratas.

S� para dar alguns exemplos entre milhares:

Anos atr�s, Caetano Veloso me opunha ao fil�sofo marxista Slavoj Zizek e nos superava num instante fazendo de n�s os representantes padronizados de duas formas extremas de anti-individualismo: anti-individualismo de esquerda, anti-individualismo de direita. Pouco lhe importava que, pelo menos da minha parte, eu jamais tivesse dito uma �nica palavra contra ou a favor do individualismo, muito menos em simetria oposta com qualquer id�ia do prof. Zizek, que s� vim a conhecer anos depois e onde nada enxerguei que tivesse com as minhas pr�prias o m�nimo de afinidade sem o qual toda oposi��o � imposs�vel.

Decorridos alguns anos, fui, ao contr�rio e com id�ntica surpresa, nomeado individualista devoto pelo prof. Alexandre Duguin, que se definia como anti-individualista professo, o que produziu, no Twitter, no Orkut, no Facebook e em outras assembl�ias de s�bios uma profus�o de supera��es dial�ticas t�o brilhantes e arrasadoras quanto a do pensador baiano.

Uns dias atr�s, um tal de Hermes Fernandes, pastor protestante, emudecido de raiva ante cr�ticas que eu lhe fizera por conta do tratamento abjeto que dera a seu colega J�lio Severo, resolveu me pegar por outro lado e, n�o sabendo o que dizer, apelou ao recurso de praxe: op�s simetricamente Karl Marx a Olavo de Carvalho como defensores da lealdade absoluta, o primeiro ao Estado, o segundo ao Capital, e, proclamando lealdade exclusiva a Nosso Senhor Jesus Cristo, demonstrou-se instantaneamente superior a ambos, ad majorem Dei gloriam.

Fiquei aqui meditando, cabisbaixo, sobre que raio de coisa poderia ser "lealdade ao Capital". Voc� pode ser leal a um partido, a uma igreja, a uma fam�lia, a uma pessoa, a uma id�ia, mas como "ser leal a uma quantidade abstrata que s� existe para ser posta em risco? "Ser leal ao Capital" � uma express�o t�o sensata quanto "votar num sorvete" ou "ler um pastel". J� a lealdade ao Estado � poss�vel, mas est� fora do universo de Karl Marx, que s� via no Estado (erroneamente) o instrumento da sua pr�pria destrui��o.

Direi que eu e Karl Marx entramos no triunfo dial�tico do pastor como Pilatos no Credo? Nem isso, porque Pilatos ao menos estava no local dos acontecimentos, e n�s nunca estivemos onde o pastor nos colocou. Pouco importa: a modalidade de supera��o dial�tica que se tornou end�mica no Brasil adquire sua for�a, precisamente, do fato de nunca ter nada a ver com o assunto.


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Publicado com o t�tulo de "Curso intensivo para gostos�o intelectual

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