Ciência e ideologia
Olavo de Carvalho
Vinte e quatro séculos atrás, Sócrates,
Platão e Aristóteles lançaram as bases do
estudo científico da sociedade e da política. Muito se
aprendeu depois disso, mas os princípios que eles formularam
conservam toda sua força de exigências
incontornáveis. O mais importante é a
distinção entre o discurso dos agentes e o discurso do
cientista que o analisa. Doxa (opinião) e
epistemê (ciência) são os termos que os
designam respectivamente, mas estas palavras tanto se desgastaram
pelo uso que para torná-las novamente úteis é
preciso explicar seu sentido em termos atualizados. Foi o que fez
Edmund Husserl com a distinção entre o discurso
“pré-analítico” e o discurso tornado
consciente pela análise de seus significados embutidos.
“Pré-analítico” é o discurso que
tem vários significados confusamente mesclados e por isso
não serve para descrever nenhuma realidade objetiva, apenas
para expressar o estado de espírito -- ele próprio
confuso -- da pessoa que fala. Mas esse estado de espírito,
esse amálgama de desejos, temores, anseios e expectativas,
é por sua vez um um componente da situação
objetiva. Por meio da análise, o estudioso decompõe os
discursos dos vários agentes em distintas camadas de
intenções e redesenha a situação segundo
um mapa que pode sair bem diverso daquele imaginado pelos
agentes.
Por exemplo, na linguagem corrente podemos opor o comunismo ao
anticomunismo como duas “ideologias”. Objetivamente,
porém, o comunismo tem uma história contínua de
150 anos e, malgrado todas as suas dissidências e variantes,
é um movimento histórico identificável, uma
“tradição” que se prolonga justamente por
meio do conflito interno. Já o “anticomunismo”
abrange movimentos sem nenhuma conexão ou parentesco entre
si, que coincidem em rejeitar uma mesma ideologia por motivos
heterogêneos e incompatíveis. Só para dar um
exemplo extremo, o rabino Menachem Mendel Schneerson, célebre
ativista anti-soviético, era anticomunista por ser judeu
ortodoxo; Joseph Goebbels era anticomunista por achar que o
comunismo era uma conspiração judaica.
Comunismo e anticomunismo só constituem espécies do
mesmo gênero quando considerados como puras
intenções verbais desligadas de suas
encarnações históricas, isto é, da
única realidade que possuem. O comunismo é uma
“ideologia”, isto é, um discurso de
autojustificação de um movimento político
identificável. O anticomunismo não é uma
ideologia de maneira alguma, mas a simples rejeição
crítica de uma ideologia por motivos que, em si, não
têm de ser ideológicos, embora possam ser absorvidos no
corpo de diversas ideologias.
Os líderes nazistas estavam conscientes disso. Hitler
declarou-o expressamente nas suas confissões a Hermann
Rauschning, e Goebbels, quando o cineasta Fritz Lang recusou um
cargo no governo alegando ter mãe judia, respondeu:
“Quem decide quem é ou quem não é judeu
sou eu.” Mas a massa dos militantes imaginava estar despejando
seu rancor sobre um inimigo preciso e bem definido.
Não é preciso dizer que os conceitos comunistas do
“burguês” e do “proletário”
são igualmente fantasmagóricos -- se bem que envoltos
numa embalagem intelectualmente mais elegante. O próprio
historiador marxista E. P. Thompson reconheceu que é
impossível distinguir um “proletário” por
traços econômicos objetivos: é preciso
acrescentar informações culturais e até
psicológicas -- entre as quais, é claro, a
própria auto-imagem do sujeito que se sente integrado nas
“forças proletárias” pelo ódio
à imagem do “burguês”.
Os kulaks, que foram mortos aos milhões na URSS,
eram nominalmente “camponeses ricos”. Ninguém
sabia dizer se para ser catalogado como “rico” era
preciso ter uma vaca, duas vacas ou talvez uma dúzia de
galinhas, mas isso pouco interessava: o kulak era um
símbolo, e a militância comunista no campo consistia em
odiá-lo. A força da identidade grupal comunista,
reiterada pelos constantes discursos de ódio, se projetava
sobre o kulak e lhe conferia uma aparência de
realidade social perfeitamente nítida. Por isso o militante
não sentia ter errado de alvo quando matava um camponês
que não tivesse vacas nem galinhas, mas apenas um
ícone da igreja russa na parede. A crença religiosa
transferia a vítima para outra classe econômica.
É analisando e decompondo esses compactados verbais e
comparando-os com os dados disponíveis que o estudioso pode
chegar a compreender a situação em termos bem
diferentes daqueles do agente político. Mas também
é certo que os próprios conceitos científicos
daí obtidos podem se incorporar depois no discurso
político, tornando-se expressões da doxa. É
isso, precisamente, o que se denomina uma ideologia: um discurso de
ação política composto de conceitos
científicos esvaziados de seu conteúdo
analítico e imantados de carga simbólica. Então
é preciso novas e novas análises para neutralizar a
mutação da ciência em ideologia.
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