Musicalmente, alguns preferem Tristão e
Isolda, mas, em matéria de força
dramática e riqueza de significado, a
ária final de Wotan em As
Valquírias, “Leb Wohl”
(“Adeus”), é sem dúvida
o cume da obra de Richard Wagner. Que é que
isso tem a ver com o Natal? Espere um pouco e
deixe-me relembrar a cena.
Pressionado por sua esposa Fricka, que lhe cobra
seus deveres de mantenedor da ordem
cósmica, Wotan, o equivalente
germânico de Zeus, promete, a contragosto,
punir com a morte seu neto Siegmund, culpado de
adultério e incesto com sua irmã
Sieglinda. Para isso, ele envia sua filha mais
querida, Brunilda, ao local onde o marido de
Sieglinda vai duelar com Siegmund, para assegurar
que Siegmund, privado de todo auxílio
divino, seja morto no duelo. No momento decisivo,
Brunilda deixa-se tomar de compaixão por
Siegmund e, descumprindo a ordem recebida, tenta
protegê-lo. Wotan tem de intervir
pessoalmente, fazendo em pedaços a espada
mágica de Siegmund e deixando que ele seja
morto pelo marido de Sieglinda, Hunding.
Tão logo termina o duelo, Wotan, desgostoso
consigo próprio e cheio de desprezo pelo
vencedor, mata Hunding com um simples sopro. Agora
o rei dos deuses tem de punir a filha, para
não permitir que um ato de
traição perturbe a ordem do
Valhalla, o céu dos deuses
germânicos. Atormentado pelo conflito
insolúvel entre o dever de governante e o
amor paterno, Wotan queixa-se de que, entre todos
os seres, o mais miserável e sofredor
é ele próprio. No instante em que
ele se prepara para matar Brunilda, ela apela
à compaixão do pai, pedindo que a
sentença de morte seja substituída
pela de expulsão. Wotan abraça
ternamente a filha e a faz adormecer numa montanha
protegida por um círculo de fogo,
prometendo que nenhum homem indigno tocará
nela e que, ao despertar como criatura humana,
desprovida de poderes divinos, ela terá por
marido um nobre guerreiro que a protegerá
de todos os males. Wotan despede-se da filha e,
enquanto ela adormece, sai cabisbaixo, derrotado
pelo seu próprio poder.
Esse episódio marca o instante em que a
ordem do mundo mitológico entra em
contradição consigo própria e
descobre o seu limite. No mundo dos deuses
não há lugar para a
compaixão. Só no mundo humano
Brunilda poderá desfrutar os
benefícios do perdão que o pai
tão ardentemente lhe deseja conceder. Nesse
momento, a lei dos deuses admite que há uma
justiça superior à do próprio
Wotan-Zeus. A ordem cósmica só pode
ser restaurada mediante o sacrifício de
Wotan, mas ele próprio entende isso como um
sofrimento absurdo, uma incongruência, uma
irregularidade. Quando Brunilda despertar, ela
estará num novo mundo, onde o
auto-sacrifício do deus não
será mais uma irregularidade, e sim o
princípio mesmo da lei que rege o universo.
O Deus invisível e sem nome que impera
muito acima de Wotan oferece o seu próprio
Filho em sacrifício, porque sabe que nenhum
sacrifício humano pode restaurar a ordem:
só o sangue do próprio Deus tem esse
poder. O adeus de Wotan é o mundo antigo
que se despede, baixando a cabeça ante uma
ordem superior a que o próprio Wotan
obedece, mas que ele não pode compreender.
É o advento desse mundo novo, a tomada de
consciência universal dessa nova ordem, onde
o perdão não é a
exceção mas a regra, que se celebra
no Natal. O gesto incomum de Wotan será
aí a lei geral e eterna, que restaura a
ordem do mundo não uma vez, mas a cada
instante, de novo e de novo, injetando no mundo
finito novas e novas possibilidades que vêm
do amor infinito. Ao adeus de Wotan, baixado o
pano sobre a cena mitológica, segue-se o
nascimento de Cristo, o advento da Nova
Aliança onde Brunilda será perdoada
não uma vez, mas vezes infinitas. O
perdão não é um ato raro e
excepcional, que quase às escondidas
ludibria a ordem cósmica em nome do amor
paterno. Ele é a lei fundamental do
universo, a base mesma de toda existência.
ftp://camerata.mine.nu/hines/Jerome%20Hines-Leb%20Wohl%201961%20Bayreuth.mp3
|
Musically, some prefer Tristan and Isolde, but in
the matter of dramatic power and richness of
meaning, Wotan’s final aria in The Valkyrie,
“Leb Wohl” (Farewell), is doubtless
the pinnacle of Richard Wagner’s work. What
does that have to do with Christmas? Hold on a
while, and let me recall the scene.
Pressured by his wife Fricka, who urges him to
fulfill his duties as maintainer of the cosmic
order, Wotan, the Germanic counterpart of Zeus,
unwillingly promises to punish by death his
grandson Siegmund—guilty of adultery and
incest with his sister Sieglinde. To achieve this
goal, Wotan sends his dearest daughter,
Brünnhilde, to the place where
Sieglinde’s husband will fight a duel with
Siegmund, to ensure that Siegmund, deprived of all
divine assistance, is killed in the duel. At the
decisive moment, Brünnhilde allows herself to
be overcome with compassion for Siegmund, and
disobeying the order she received, attempts to
protect him. Wotan has to intervene personally,
breaking Siegmund’s magic sword into pieces
and letting him be killed by Sieglinde’s
husband, Hunding. As soon as the duel comes to an
end, Wotan, displeased with himself and full of
contempt for the winner, kills Hunding with a
simple puff of breath. Now the king of the gods
has to punish his daughter, in order not to permit
that an act of treason disturbs the order of
Valhalla, the heaven of the Germanic gods.
Tormented by the insoluble conflict between the
duties of rulership and paternal love, Wotan
complains that he himself among all beings is the
most suffering and miserable one. At the moment
that he prepares to kill Brünnhilde, she
appeals to her father’s compassion,
requesting that her death sentence may be
substituted for banishment. Wotan tenderly
embraces his daughter and soothes her into sleep
on a mountain peak protected by a ring of fire,
promising that no unworthy man will ever touch her
and that, when she awakes as a human creature,
deprived of divine powers, she will have for a
husband a noble warrior, who will protect her from
all evil. Wotan bids his daughter farewell and,
while she is falling asleep, departs downcast,
defeated by his own power.
This episode marks the instant at which the order
of the mythological world falls into contradiction
with itself and discovers its limit. Compassion
has no place in the world of gods. Only in the
human world will Brünnhilde be allowed to
enjoy the benefits of the forgiveness that her
father so ardently wishes to grant her. At this
moment, the law of the gods admits that there is a
higher justice than that of Wotan-Zeus himself.
The cosmic order can only be restored through
Wotan’s sacrifice, but he himself
understands this as absurd suffering, incongruity,
irregularity. When Brünnhilde awakes, she
will be in a new world, where the god’s
self-sacrifice will no longer be an irregularity,
but rather the very principle of the law governing
the universe. The nameless and invisible God who
reigns far above Wotan offers his own Son in
sacrifice, because He knows that no human
sacrifice can restore order: only the blood of God
Himself has such power. Wotan’s farewell is
the ancient world taking its leave, lowering his
head before a higher order which Wotan himself
obeys, but cannot comprehend.
It is the advent of this new world, the coming to
the universal awareness of this new order, where
forgiveness is not an exception but the rule,
which is celebrated at Christmas. There,
Wotan’s uncommon gesture will be the general
and eternal law, which restores the order of the
world not just once, but at every moment, over and
over again, injecting ever new possibilities
coming from the infinite love into the finite
world. What follows Wotan’s farewell, after
the curtain is drawn down upon the mythological
scene, is the birth of Christ, the advent of the
New Alliance where Brünnhilde will be
forgiven not only once, but infinite times.
Forgiveness is not a rare and exceptional act,
which, in the name of paternal love, deceives the
cosmic order almost in an underhanded way.
Forgiveness is the fundamental law of the
universe, the very basis of all existence.
(Translated by Alessandro Cota)
ftp://camerata.mine.nu/hines/Jerome%20Hines-Leb%20Wohl%201961%20Bayreuth.mp3
|