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Meditação de Natal
Olavo de Carvalho Se há no mundo uma coisa óbvia, é que o cristianismo não é na origem uma doutrina, mas uma narrativa de fatos miraculosos. O próprio Jesus deixa isso muito claro em Mateus 11:1-6, quando lhe perguntam quem Ele é: “Contem o que ouviram e viram: os cegos enxergam e os paralíticos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem e os mortos se levantam”. Se essa é a autodefinição de Jesus, essa é a definição do cristianismo: não um discurso doutrinal, mas uma sucessão de milagres. Mas vivemos numa época tão estúpida que as pessoas, mesmo crentes, já não conseguem conceber o que seja um milagre: acreditam que é um acontecimento estranho ao qual se atribui uma “causa divina” por falta de uma “explicação científica”. Essa idéia é absurda. Vejam, por exemplo, o milagre de Fátima: ele junta, num só momento do tempo, uma variedade de acontecimentos correlatos – as aparições, milhares de curas de doenças, as profecias confirmadas pelo decorrer da História e, por fim, a “dança do Sol”, vista a centenas de quilômetros por pessoas sem a menor idéia dos demais fatos que ocorriam simultaneamente. Uma “explicação materialista” requereria uma superciência inexistente e, a rigor, impossível, que fosse capaz de encontrar uma causa material comum não só para os variados fatos de ordem histórica, médica e astronômica que compõem o episódio mas para a sua convergência naquele instante e lugar, bem como para a sua coincidência acidental com a simbólica e as doutrinas cristãs.
Na verdade, todo milagre é assim: não
é um fato recortável nos padrões
desta ou daquela ciência existente ou inexistente,
mas um complexo inseparável, e inexplicavelmente
harmônico, de diferentes fatos pertencentes a
diferentes planos de realidade. Não pode haver
uma “explicação
científica” dos milagres antes da sua
descrição científica, e
esta não pode ser válida se começa
por mutilar os dados que pretende explicar. Não
obstante, a mera hipótese de uma
“explicação material” futura,
embora problemática e virtualmente
impossível, é usada com
freqüência como argumento cabal para negar de
imediato o caráter miraculoso de fatos bem
comprovados. Suponham que seja possível encontrar
uma explicação médica para a menina
que, curada pelo Padre Pio de Pietrelcina, enxerga sem
pupilas. Seria ainda preciso explicar a
coincidência de que esse fato médico
inusitado acontecesse em seqüência com
centenas de outros fatos miraculosos, uns semelhantes,
outros diferentes, ocorridos no curso de uma mesma vida
de santo. Por exemplo, o fato de que o mesmo sacerdote
conhecesse tão bem a vida secreta de tantas
pessoas que ele via pela primeira vez, ou de que, ao
contrário, fosse visto à distância
por pessoas que nunca tinham ouvido falar dele, e que
depois ao conhecê-lo confirmavam o que ele lhes
havia dito nessas aparições. O Padre Pio
de verdade, efetivamente existente, é o mesmo ser
humano concreto que fez todas essas coisas, e não
as fez em momentos isolados, inconexos, mas no curso de
uma vida coerentemente dedicada àquele que, no
seu entender, era o Autor desses milagres. Qual o nexo
comum entre esses vários fatos – entre a
disciplina cristã do Padre Pio, a menina que
vê sem pupilas, as aparições
à distância, os segredos íntimos
conhecidos à primeira vista, etc. etc.? Ou
você encontra esse nexo, ou as
“hipóteses científicas” que
você inventou para explicar um ou outro detalhe
isolado – só existente como tal na sua
imaginação abstrata – não
serve para absolutamente nada. A impotência da
ciência materialista ante os milagres não
é um obstáculo temporário que possa
ser removido por “progressos” futuros:
é um abismo intransponível. Os milagres, a
começar por este que celebramos hoje, não
são fatos comuns provisoriamente inexplicados:
são fatos de uma ordem específica, com uma
estrutura interna reconhecível e
irredutível, distintos não só dos
fatos acessíveis a esta ou àquela
ciência materialista, mas até mesmo a uma
utópica articulação de todas as
ciências materialistas existentes ou por
existir.
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