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Ofício proibido

Olavo de Carvalho
Jornal do Brasil, 17 de julho de 2008

 

No tempo da ditadura, quando os jornais estavam sob fiscalização cerrada e os rumos da política eram decididos em reuniões secretas, seja entre generais de quatro estrelas ou entre líderes de organizações terroristas, o noticiário político propriamente dito desapareceu da mídia nacional. Sobravam, é claro, os discursos parlamentares, mas todo mundo sabia que eram apenas um formalismo. A política propriamente dita, a política substantiva – quer dizer, a luta pelo poder e as finalidades com que ele se exerce – tinha se tornado assunto proibido.

Como os jornais têm de sair com um certo número de páginas haja notícias ou não, e como o artifício das receitas de bolo e trechos dos Lusíadas era de aplicabilidade limitada, o remédio foi dar destaque exagerado a dois tipos de matérias que antes ocupavam lugares modestos na hierarquia editorial: as notícias de economia e as denúncias de corrupção. Eram o que sobrava de mais apolítico à disposição de um ofício que é político por natureza. Para mim, redator de economia, a transição foi vantajosa. Meus relatos infinitamente tediosos sobre o preço dos pãezinhos e o índice de inflação, que normalmente vegetavam em obscuras páginas internas, vieram para a capa do jornal e às vezes até deram manchetes. Os repórteres políticos, coitados, tinham um orgasmo cada vez que descobriam algum desvio de verba numa prefeitura do interior, e orgasmos múltiplos quando o envolvido no caso era superior a chefe de gabinete.

A ditadura acabou em 1988, mas os critérios jornalísticos então adotados continuaram em plena vigência, ainda que com signo invertido. O que aparece como noticiário político é só a fachada oficial, complementada pelas análises econômicas e casos de corrupção. A luta ideológica, as estratégias de longo prazo, a distribuição real do poder – tudo isso permanece desaparecido como se houvesse um censor dentro de cada redação. Na eleição presidencial de 2002, nem um único jornal deu sinal de notar o fenômeno extraordinário da uniformidade ideológica entre os quatro candidatos, pelo menos três dos quais previamente atados pelo compromisso de fidelidade mútua no quadro do Foro de São Paulo. Exatamente como nos “anos de chumbo”, a missão do jornalismo não era mostrar os fatos, mas produzir uma reconfortante sensação de normalidade para encobri-los. A existência do eixo Lula-Castro-Chávez, hoje abundantemente comprovada, só vazou um pouquinho por pressão da mídia internacional, mas, para a tranqüilidade geral da nação, logo sumiu sob um bombardeio de chacotas forçadas. Quanto ao Foro de São Paulo e às conexões do PT com as Farc, só repetindo o Figaro de Mozart: Il resto non dico, già ogniuno lo sà.

Mas nem tudo no jornalismo atual é igual àqueles tempos. Em primeiro lugar, o número e a relevância das notícias sonegadas ao público – praticamente todos os acontecimentos decivos para o destino de um continente inteiro – não se comparam às miudezas, de importância meramente local e tática, que então foram suprimidas. Em segundo, a maioria da classe era contra aquele antijornalismo imposto. Hoje ela o pratica por vontade própria, alegremente, mal suportando que o critiquem. Em terceiro, os generais nunca acharam que denunciar corruptos ou noticiar fracassos econômicos fosse conspiração, subversão, extremismo de esquerda. Não só permitiam que falássemos dessas coisas livremente, mas até nos agradeciam, por julgar que com isso contribuíamos para a boa administração do Estado. Hoje, mesmo os jornais que mais servilmente se adaptaram às circunstâncias são abertamente acusados de subversivos, de golpistas, de extremistas de direita, cada vez que pegam um alto funcionário levando propina ou anunciam a volta da inflação. A margem de tolerância para com o exercício do jornalismo diminuiu muito, mas só percebem isso os velhos profissionais que já sentiram o gosto da liberdade. As gerações mais novas não notam nada de anormal, pois nunca viram jornalismo de verdade.