Relembrando o irrelembr�vel
Olavo de Carvalho
O general e historiador comunista Nelson Werneck Sodr�, descrevendo no seu livro A F�ria de Calib� os horrores apocal�pticos da persegui��o a intelectuais logo ap�s o golpe de 1964, que ele n�o hesita em nivelar ao que sucedeu na Alemanha de Hitler, acaba se traindo ao relatar que, naquele mesmo per�odo, publicou n�o sei quantos livros, teve n�o sei quantas cr�ticas favor�veis, algumas entusi�sticas, foi brindado com alguns pr�mios liter�rios e no fim ainda recebeu uma homenagem no Instituto Brasileiro de Hist�ria Militar, em cerim�nia realizada na presen�a... do presidente da Rep�blica, marechal Humberto Castelo Branco. Jamais um historiador consentiu em personificar t�o escandalosamente um exemplum in contrarium da sua descri��o geral dos fatos. � o esplendor da paralaxe cognitiva real�ado por uma efus�o de histrionismo macuna�mico. J� imaginaram Fidel Castro prestando homenagem a um historiador anticomunista? Ou Hitler indo � Academia de Berlim para conceder honrarias universit�rias a um cientista social anti-racista? Nada mais rid�culo do que a tentativa de pintar o regime de 1964 como uma ditadura totalit�ria, empenhada em sufocar o trabalho da intelig�ncia em geral e o dos intelectuais esquerdistas em especial. Na verdade, um breve exame dos anu�rios da C�mara Brasileira do Livro, como j� apontou com mira certeira o embaixador J. O. de Meira Penna, basta para mostrar que nunca a ind�stria editorial esquerdista prosperou tanto como naquele tempo, tanto em volume de livros publicados quanto na absor��o de generosas verbas governamentais distribu�das de maneira exemplarmente � ou ingenuamente -- apol�tica. Pouco antes de morrer, o saudoso �nio Silveira, dono da maior editora comunista do pa�s, a Civiliza��o Brasileira, me confessou que sua empresa jamais teria chegado ilesa ao fim da d�cada de 80 sem os subs�dios que ele pr�prio ia esmolar pessoalmente nas altas esferas de um governo federal alegadamente empenhado � segundo hoje se ensina em todas as escolas -- em esmagar no ber�o toda manifesta��o do pensamento esquerdista. A demiss�o de umas d�zias de professores esquerdistas no come�o do regime n�o os impediu de ensinar, nem de publicar livros, nem de escrever em jornais -- s� os privou de receber dinheiro p�blico para fazer propaganda comunista. Se isso lhes doeu tanto, n�o foi porque sua exclus�o da universidade oficial trouxesse algum dano substantivo � cultura brasileira (sob esse aspecto ela trouxe at� algum benef�cio): foi porque o dinheiro p�blico � o alimento essencial da elite esquerdista, a qual, como se confirmou abundantemente depois da sua ascens�o ao poder, se acha credenciada por uma esp�cie de direito natural a consumi-lo em quantidades ilimitadas, sem ter de prestar contas e, a exemplo do MST, sem precisar nem mesmo assinar recibo. As v�timas dessa odiosa essa priva��o alimentar, que foram ali�s pouqu�ssimas, sobretudo em compara��o com o n�mero de intelectuais cubanos exilados, n�o sofreram nenhum entrave s�rio ao exerc�cio das atividades culturais na iniciativa privada, onde, ao contr�rio, os empreendimentos esquerdistas proliferaram como nunca, entre outras raz�es pela ajuda milion�ria que come�aram a receber de funda��es estrangeiras, tamb�m sem nunca ter de prestar contas. Foi tamb�m durante os governos militares que os intelectuais e artistas de esquerda, pondo em pr�tica os ensinamentos de Antonio Gramsci, trataram de abocanhar todos os espa�os nas universidades, nas institui��es culturais e na ind�stria editorial, desalojando um a um os conservadores que, quando veio a redemocratiza��o, j� estavam t�o marginalizados e isolados que a elei��o de Roberto Campos para a Academia Brasileira, em 1999, surgiu como uma anomalia escandalosa e quase inacredit�vel. No dom�nio do jornalismo, s� for�ando muito a realidade os esquerdistas se poderiam queixar de persegui��o, de vez que o �rg�o mais visado pela censura foi justamente o mais conservador de todos, O Estado de S. Paulo , enquanto os seman�rios esquerdistas superlotavam as bancas e sofriam incomodidades, � certo, mas nem de longe compar�veis � press�o cont�nua que o governo impunha ao jornal dos Mesquita (n�o venham com conversa para cima de mim, porque eu trabalhava l� nessa �poca e vi tudo de perto). A simples contagem de cabe�as basta para mostrar que o relativo pluralismo existente nas reda��es em 1964 foi cedendo lugar � hegemonia esquerdista mais descarada, at� o ponto de que, dos anos 80 em diante, os grandes jornais fizeram quest�o de ter pelo menos um direitista no seu corpo de articulistas para atenuar a impress�o de uniformidade ideol�gica que flu�a de cada uma de suas p�ginas, do notici�rio policial at� as colunas sociais, mas sobretudo das se��es de arte e cultura, onde uma hegemonia se somava a outra. Coube a Paulo Francis, a Roberto Campos e depois a mim representar o papel dessas exce��es que confirmavam a regra. Nos regimes totalit�rios, a opini�o da m�dia, por defini��o e por uma quest�o de mera sobreviv�ncia, vai se amoldando cada vez mais ao discurso oficial, at� desaparecer toda possibilidade de oposi��o. A hist�ria do jornalismo brasileiro nos vinte anos de governo militar seguiu o curso simetricamente inverso, com a m�dia em peso apoiando o golpe em 31 de mar�o de 1964 e depois tornando-se cada vez mais esquerdista at� que, no fim do governo Figueiredo, j� n�o sobrava nos jornais e canais de TV um s� jornalista que ousasse se opor ao consenso esquerdista e mencionar em voz alta, mesmo com restri��es, os m�ritos mais �bvios de um regime que alcan�ara progressos econ�micos jamais igualados antes ou depois (a express�o �nunca n�fte pa�f...� � um salto anacron�stico de trinta anos). Seja nos �rg�os de educa��o e cultura, seja no jornalismo, a esquerda, em vez de ser calada e marginalizada, foi indo cada vez mais para o topo e falando cada vez mais alto, at� que j� n�o se podia ouvir nenhuma outra voz sen�o a sua: se tagarelice esquerdista fosse alta cultura, o tempo dos militares teria sido o apogeu da nossa hist�ria intelectual at� ent�o (digo �at� ent�o� porque nada se compara ao brilho e � majestade da Era Lula). Mas, como � dif�cil fazer-se de intelectual exclu�do e ao mesmo tempo imperar sobre a cultura de um pa�s ao ponto de poder decidir quem entra e quem sai, a intelligentzia esquerdista se atrapalha um pouco na narrativa daquele per�odo, ora chamando-o de �anos de chumbo�, ora de �anos dourados�. Talvez n�o seja confus�o, � claro, apenas uma natural altern�ncia estil�stica, conforme essa coletividade de pessoas exemplares deseje acentuar como tudo em volta era feio ou como ela pr�pria era bela. A l�ngua p�rfida de Daniel M�s dizia que a segunda dessas express�es se referia, na verdade, aos pacotinhos dourados em que a coca�na era entregue, na p�rgola do Copacabana Palace, �s estrelas das letras e das artes que ali se dedicavam mais altos afazeres intelectuais de que se tem not�cia. Caso esta vers�o seja fidedigna, ela n�o suprime a anterior, antes a refor�a metonimicamente, designando pela cor da embalagem o efeito do estupefaciente que induzia aquelas criaturas a imaginar que brilhavam como ouro sob um c�u de chumbo. *** Tive meus arranca-rabos com o general Andrade Nery e os teria de novo pelas mesm�ssimas raz�es, mas n�o posso deixar de cumpriment�-lo por sua rea��o viril � tentativa de usar as For�as Armadas numa opera��o t�o vexat�ria como a retirada dos agricultores brasileiros para dar lugar a uma �na��o ind�gena�. Falando pelos companheiros de farda aos quais o c�digo disciplinar imp�e um mutismo indignado, o general disse o que todos os militares brasileiros gostariam de dizer: as For�as Armadas existem para defender o Brasil, n�o para destrui-lo sob pretextos politicamente corretos. Espero que a ocasi�o sirva para alertar o general quanto � verdadeira origem das press�es globalistas que amea�am o futuro deste pa�s, origem sobre a qual eu n�o poderia ser mais claro nem mais concludente do que fui nos meus antigos das �ltimas semanas.
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