Quando você esteve no Brasil trinta anos atrás, o
panorama de miséria, atraso, opressão e taxas
altíssimas de mortalidade infantil por
desnutrição parecia ser o resultado
inevitável de um regime político dominado por
oligarcas rurais corruptos e de uma economia agrícola
latifundiária e monoculturista.
A reforma agrária, com distribuição de
terras e ajuda estatal aos pequenos proprietários,
parecia ser o remédio mais adequado para a
situação desesperadora de milhões de
brasileiros, mas os senhores do poder opunham à sua
aplicação uma resistência obstinada,
através do Congresso e da mídia.
Nos grupos políticos, intelectuais e militares livres
de compromissos com os oligarcas, não havia muita
divergência nem quanto ao diagnóstico, nem quanto
à terapêutica. A necessidade da reforma
agrária era admitida pelo consenso geral, só
restando saber quem iria promovê-la, a esquerda ou a
direita. Esta última, subindo ao poder em 1964, tomou
logo a dianteira, promulgando o Estatuto da Terra e fundando
em 1970 o Instituto nacional de Colonização e
Reforma Agrária , que é até hoje o centro
de comando da reforma agrária no Brasil.
No mesmo ano, a oposição comunista criou o
Movimento dos Sem-Terra, para lutar por um modelo alternativo
de reforma. Enquanto o governo preferia distribuir terras sem
dono, aproveitando a reforma como instrumento de
colonização das imensas áreas desocupadas
do país, os comunistas preferiam invadir e ocupar as
fazendas dos oligarcas, dando ao empreendimento o teor de luta
de classes.
De início, o pretexto para fazer isso foi que se
tratava de terras improdutivas, mas logo a
distinção se tornou puramente acadêmica,
pois fazendas altamente produtivas � algumas consideradas
modelares pelos padrões da FAO � passaram a ser
também invadidas. Invadidas, queimadas e totalmente
destruídas. Isso mostrava claramente que o objetivo do
MST não era a produção agrícola,
mas sim a ocupação de espaços
estratégicos que lhe dessem o controle sobre o sistema
rodoviário, como acabou de fato acontecendo.
Outra diferença é que o modelo governamental
privilegiava a exportação, enquanto os
comunistas chamavam isso de concessão ao imperialismo e
diziam preferir o mercado interno, embora jamais explicassem
como abasteceriam o mercado interno (ou qualquer outro)
queimando os meios de produção.
Antes, porém, que a distribuição de
terras, seja pelo modelo governamental, seja pela via
comunista, pudesse obter qualquer resultado economicamente
sensível, sobreveio na década de 80 uma
sucessão de fatos extraordinários que
modificaram todo o quadro. No centro-oeste do Brasil há
uma imensa extensão de terras que são as mais
férteis do País. Uma parcela significativa dessa
área foi ocupada pelo MST, cujos militantes, embora
subsidiados pelo governo, não conseguiram -- é
claro -- administrá-la, passando então a vender
suas propriedades. Estas foram compradas, em parte, pelos
antigos oligarcas, mas sobretudo por pequenos
proprietários do Sul, que assim se tornaram grandes
proprietários no centro-oeste.
Usando técnicas agrícolas aprimoradas, eles
conseguiram em poucos anos
aumentar de tal modo a produção agrícola
das grandes fazendas, que o preço dos alimentos
básicos se tornou muito barato e o problema da fome
praticamente desapareceu da cena brasileira.
Decerto, o candidato presidencial Luís Inácio
Lula da Silva venceu as eleições de 2002 e 2004
anunciando um programa chamado Fome Zero, voltado aos
"cinqüenta milhões de brasileiros que passam
fome", mas, após um dos comícios em que voltava
a esse assunto, foi filmado declarando a seus assessores, na
intimidade, que esse número era pura mentira.
E era mesmo. No Brasil um frango custa um dólar, um
litro de leite meio dólar, o quilo de carne bovina dois
dólares e meio, uma baguette cinqüenta centavos de
dólar. Com cinqüenta ou sessenta dólares
por mês você come sanduíches de carne e
toma leite todos os dias. As mortes infantis por
desnutrição, que eram endêmicas uns anos
atrás, tornaram-se praticamente inexistentes.
O dinheiro distribuído pelo Fome Zero pode ajudar as
pessoas a comprar
sapatos ou a pagar a conta de luz, mas quase ninguém
precisa dele para comprar comida. O MST, ricamente subsidiado
pelo governo, continua clamando pela reforma agrária,
mas é o maior latifundiário do País e sua
produção é irrisória.
Cada vez mais o movimento se dedica a objetivos puramente
político-estratégicos, invadindo e queimando
fazendas produtivas ao longo das rodovias, para poder
paralisar o tráfego quando bem entende e assim exigir
mais e mais dinheiro do governo.
Sua militância compõe-se em grande parte de
desempregados urbanos que perceberam as vantagens de
transmutar-se em falsos agricultores sem-terra para poder
viver de verbas estatais ou, melhor ainda, de receber de
graça terras do Incra, vendê-las e entrar
novamente na fila.
Não espanta que, nessas condições, o
objetivo declarado do MST, hoje,
seja o de destruir precisamente a parte mais produtiva e
próspera da agricultura nacional, o chamado
agronegócio.
É preciso acabar com essa bête noire porque ela
produz comida barata, alimenta o país e desmoraliza
não só o MST como também, no fim das
contas, a própria idéia de reforma
agrária.
A segunda parte da carta, na próxima segunda.