Acordo secreto
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio (editorial) , 29 de outubro
de 2006
Da nossa geração não se pode dizer que
viveu, mas que rastejou em silêncio: os jovens rumo
à decrepitude, os velhos rumo a sepulturas sem honra.
(Tácito, historiador romano, c. 56 – c. 117 a.
D.).
O ponto alto do debate de sexta-feira foi a declaração
de Lula de que nenhum governo anterior investigou tão a fundo
ou esteve tão bem informado sobre os crimes de
corrupção quanto o seu. Não é mesmo
maravilhoso que o mais avisado dos presidentes nada saiba dos crimes
cometidos por cinco de seus próprios ministros? Não
é uma delícia que o governo que enxerga tudo da
delinqüência espalhada no país inteiro ignore o
que se passa no Palácio do Planalto?
Mas não pensem que a inconsistência do seu
próprio discurso seja motivo de preocupação
para Lula. Estontear a platéia com um bombardeio de
afirmações contraditórias tem sido há
anos a técnica essencial da propaganda lulista. Na
eleição de 2002, explorou-se até o limite da
alucinação o paradoxo de um personagem que merecia ao
mesmo tempo a compaixão devida aos iletrados e a
reverência devida a um sábio, conhecedor profundo dos
problemas brasileiros, doutor honoris causa e candidato virtual
à Academia Brasileira de Letras. Agora, ele é
simultaneamente o homem da visão de raios-x, a quem nenhum
delito escapa, e o pobre ingênuo ludibriado por seus mais
próximos amigos e colaboradores.
Mais ingênuo ainda, porém, é quem vê nisso
uma prova de confusão mental e incompetência petista.
Que incompetência mais estranha, essa que sempre vence a
competência alheia! Na verdade, é impossível
acreditar que, com tantos cientistas sociais, psicólogos,
estrategistas e engenheiros comportamentais a serviço do PT e
do Foro de São Paulo, ninguém ali tenha ensinado aos
chefes da campanha petista as virtudes estupefacientes da
estimulação contraditória e da
dissonância cognitiva. Mas nem isso seria preciso: qualquer
militante, minimamente treinado na dialética de Hegel e Marx
para raciocinar segundo duas linhas de dedução opostas
e explorar o duplo sentido das palavras e situações,
está habilitado para fazer de trouxa os mais espertos
empresários, políticos tradicionais e oficiais das
Forças Armadas, viciados numa semântica literaralista e
num raciocínio desesperadoramente linear.
Outro detalhe especialmente suculento do debate foi Alckmin
enfatizar que os membros do PCC não são do seu
partido, como quem diz que são do outro. Com isso ele mostrou
saber da ligação íntima entre PT e PCC. Mas, se
sabia, por que se calou? E, se preferiu calar, por que não o
fez por completo? Por que deixou escapar uma alusão velada
que pelo menos os telespectadores informados entenderam
perfeitamente bem? O discurso de Alckmin está obviamente
travado por algum controle oculto, a que ele, sem apreciá-lo,
se curva por necessidade ou oportunismo.
Mas não é preciso sondar conspirações
para explicar isso. Tanto o PT quanto o PSDB – e a quase
totalidade das carreiras políticas nos outros partidos
– nasceram da resistência à ditadura militar,
quando a cumplicidade implícita da oposição
moderada com a esquerda terrorista era condição
indispensável à sobrevivência de ambas. Removido
o inimigo comum, perseverou a obediência ao pacto de lealdade:
a disputa é legítima, mas denunciar a trama
revolucionária da esquerda radical é "fazer o
jogo da direita". Por mais que a esquerda assanhada os rotule
de direitistas – e é um alívio para ela
tê-los como extremo limite do direitismo admissível --,
os tucanos e tutti quanti ainda são, no seu próprio
entender, herdeiros morais da tradição esquerdista, de
vinte anos de luta que culminaram na lei de anistia e nas
"Diretas Já". A nação inteira
está sendo enganada por esse acordo secreto entre
irmãos inimigos. Tucanos e similares podem acusar a petezada
de crimes menores, mas denunciar a criminalidade pesada, o
narcotráfico, os seqüestros, os homicídios, seria
trair a causa comum, o objetivo mútuo de varrer a direita do
mapa mediante a total ocupação do espaço pelas
disputas internas entre a esquerda e a direita da esquerda.
Pode ter havido um acordo explícito nesse sentido, e
informações recentes sugerem que houve. Mas nem era
preciso: o ódio comum ao fantasma da "direita",
somado à origem uspiana comum das duas esquerdas, é
suficiente para persuadir a ala moderada das vantagens de uma luta
fingida, travada sobre um fundo de cumplicidade tácita com a
ala revolucionária, terrorista, seqüestradora e
narcotraficante. Sem contar, é claro, o fato de que muitos
dos moderados do tempo da ditadura não o eram senão em
aparência, já que pertenciam às mesmas
organizações dos terroristas, apenas desempenhando
nelas as funções de camuflagem legal, de acordo com a
técnica da duplicidade de vias que é uma constante da
estratégia comunista desde Lênin.
A geração inteira dos políticos que fizeram
carreira na "luta contra a ditadura", em suma, está
comprometida a ocultar e proteger a violência da esquerda
radical. Pode-se combater a "corrupção",
usando a mesma linguagem com que se denunciaria a
"direita" se no poder ela estivesse. "Colarinho
branco", afinal, é expressão que tem
óbvias ressonâncias de luta de classes. Serve para ser
usada pelas duas alas. Mas seqüestros, homicídios e
narcotráfico são sacrossantos: são as armas da
revolução. Denunciá-los seria
traição à causa comum de todas as esquerdas.
Por isso o pacto de silêncio domina não só a
política partidária, mas a grande mídia
inteira, dirigida por gente da mesma geração e da
mesma extração ideológica de tucanos e
petistas. Alckmin pode odiar esse pacto, mas sabe que
violá-lo às escâncaras seria condenar-se ao
ostracismo definitivo entre os "filhotes da ditadura". Ele
pode sussurrar insinuações entre dentes, mas jamais
revelará em voz alta o segredo tenebroso em que assenta,
há vinte anos, toda a política nacional.
A conjunção dos dois fatores aqui assinalados –
o uso maciço da estimulação
contraditória e o pacto geracional de silêncio em torno
dos crimes maiores da esquerda – basta para explicar toda a
decadência moral e intelectual do Brasil ao longo de duas
décadas. A geração de políticos,
jornalistas e intelectuais que hoje está por volta dos
sessenta anos – a minha geração – é
a mais perversa e criminosa de todas quantas já nasceram
neste país. Ela é culpada da idiotização
e dessensibilização moral do país, origem de
todos os crimes que hoje culminam na matança anual de
cinqüenta mil brasileiros. Comparados a essa
geração, os mais bárbaros torturadores do
Dói-Codi eram apenas aprendizes na escola da
delinqüência.
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