Do marxismo cultural
Olavo de Carvalho
O Globo, 8 de junho de 2002
Segundo o marxismo clássico, os proletários eram
inimigos naturais do capitalismo. Lênin acrescentou a isso a
idéia de que o imperialismo era fruto da luta capitalista
para a conquista de novos mercados. Conclusão
inevitável: os proletários eram também inimigos
do imperialismo e se recusariam a servi-lo num conflito imperialista
generalizado. Mais apegados a seus interesses de classe que aos de
seus patrões imperialistas, fugiriam ao recrutamento ou
usariam de suas armas para derrubar o capitalismo em vez de lutar
contra seus companheiros proletários das nações
vizinhas.
Em 1914, esse silogismo parecia a todos os intelectuais marxistas
coisa líquida e certa. Qual não foi sua surpresa,
portanto, quando o proletariado aderiu à
pregação patriótica, alistando-se em massa e
lutando bravamente nos campos de batalha pelos interesses
imperialistas!
O estupor geral encontrou um breve alívio no sucesso
bolchevique de 1917, mas logo em seguida veio a se agravar em
pânico e depressão quando, em vez de se expandir para
os países capitalistas desenvolvidos, como o previam os
manuais, a revolução foi sufocada pela hostilidade
geral do proletariado.
Diante de fatos de tal magnitude, um cérebro normal pensaria,
desde logo, em corrigir a teoria. Talvez os interesses do
proletariado não fossem tão antagônicos aos dos
capitalistas quanto Marx e Lênin diziam.
Mas um cérebro marxista nunca é normal. O
filósofo húngaro Gyorgy Lukacs, por exemplo, achava a
coisa mais natural do mundo repartir sua mulher com algum
interessado. Pensando com essa cabeça, chegou à
conclusão de que quem estava errado não era a teoria:
eram os proletários. Esses idiotas não sabiam enxergar
seus interesses reais e serviam alegremente a seus
inimigos. Estavam doidos. Normal era Gyorgy Lukács. Cabia a
este, portanto, a alta missão de descobrir quem havia
produzido a insanidade proletária. Hábil detetive,
logo descobriu o culpado: era a cultura ocidental. A mistura de
profetismo judaico-cristão, direito romano e filosofia grega
era uma poção infernal fabricada pelos burgueses para
iludir os proletários. Levado ao desespero por tão
angustiante descoberta, o filósofo exclamou: Quem nos
salvará da cultura ocidental?
A resposta não demorou a surgir. Felix Weil, outra
cabeça notável, achava muito lógico usar o
dinheiro que seu pai acumulara no comércio de cereais como um
instrumento para destruir, junto com sua própria fortuna
doméstica, a de todos os demais burgueses. Com esse dinheiro
ele fundou o que veio a se chamar Escola de Frankfurt:
um think tank marxista que, abandonando as
ilusões de um levante universal dos proletários,
passou a dedicar-se ao único empreendimento viável que
restava: destruir a cultura ocidental. Na Itália, o fundador
do Partido Comunista, Antônio Gramsci, fôra levado a
conclusão semelhante ao ver o operiado trair o
internacionalismo revolucionário, aderindo em massa à
variante ultranacionalista de socialismo inventada pelo renegado
Benito Mussolini. Na verdade os próprios soviéticos
já não acreditavam mais em proletariado: Stálin
recomendava que os partidos comunistas ocidentais recrutassem, antes
de tudo, milionários, intelectuais e celebridades do
show business. Desmentido pelos fatos, o marxismo iria
à forra por meio da auto-inversão: em vez de
transformar a condição social para mudar as
mentalidades, iria mudar as mentalidades para transformar a
condição social. Foi a primeira teoria do mundo que
professou demonstrar sua veracidade pela prova do contrário
do que dizia.
Os instrumentos para isso foram logo aparecendo. Gramsci descobriu a
revolução cultural, que reformaria o
senso comum da humanidade, levando-a a enxergar no
martírio dos santos católicos uma sórdida
manobra publicitária capitalista, e faria dos intelectuais,
em vez dos proletários, a classe revolucionária
eleita. Já os homens de Frankfurt, especialmente Horkheimer,
Adorno e Marcuse, tiveram a idéia de misturar Freud e Marx,
concluindo que a cultura ocidental era uma doença, que todo
mundo educado nela sofria de personalidade
autoritária, que a população ocidental
deveria ser reduzida à condição de paciente de
hospício e submetida a uma psicoterapia
coletiva.
Estava portanto inaugurada, depois do marxismo clássico, do
marxismo soviético e do marxismo revisionista de Eduard
Bernstein (o primeiro tucano), a quarta modalidade de marxismo: o
marxismo cultural. Como não falava em revolução
proletária nem pregava abertamente nenhuma truculência,
a nova escola foi bem aceita nos meios encarregados de defender a
cultura ocidental que ela professava destruir.
Expulsos da Alemanha pela concorrência desleal do nazismo, os
frankfurtianos encontraram nos EUA a atmosfera de liberdade ideal
para a destruição da sociedade que os acolhera.
Empenharam-se então em demonstrar que a democracia para a
qual fugiram era igualzinha ao fascismo que os pusera em fuga.
Denominaram sua filosofia de teoria crítica
porque se abstinha de propor qualquer remédio para os males
do mundo e buscava apenas destruir: destruir a cultura, destruir a
confiança entre as pessoas e os grupos, destruir a fé
religiosa, destruir a linguagem, destruir a capacidade
lógica, espalhar por toda parte uma atmosfera de suspeita,
confusão e ódio. Uma vez atingido esse objetivo,
alegavam que a suspeita, a confusão e o ódio eram a
prova da maldade do capitalismo.
Da França, a escola recebeu a ajuda inestimável do
método desconstrucionista, um charlatanismo
acadêmico que permite impugnar todos os produtos da
inteligência humana como truques maldosos com que os machos
brancos oprimem mulheres, negros, gays e tutti quanti, incluindo
animais domésticos e plantas.
A contribuição local americana foi a
invenção da ditadura lingüística do
politicamente correto.
Em poucas décadas, o marxismo cultural tornou-se a
influência predominante nas universidades, na mídia, no
show business e nos meios editoriais do Ocidente. Seus dogmas
macabros, vindo sem o rótulo de marxismo,
são imbecilmente aceitos como valores culturais
supra-ideológicos pelas classes empresariais e
eclesiásticas cuja destruição é o seu
único e incontornável objetivo. Dificilmente se
encontrará hoje um romance, um filme, uma peça de
teatro, um livro didático onde as crenças do marxismo
cultural, no mais das vezes não reconhecidas como tais,
não estejam presentes com toda a virulência do seu
conteúdo calunioso e perverso.
Tão vasta foi a propagação dessa
influência, que por toda parte a idéia antiga de
tolerância já se converteu na tolerância
libertadora proposta por Marcuse: Toda a
tolerância para com a esquerda, nenhuma para com a
direita. Aí aqueles que vetam e boicotam a
difusão de idéias que os desagradam não sentem
estar praticando censura: acham-se primores de tolerância
democrática.
Por meio do marxismo cultural, toda a cultura transformou-se numa
máquina de guerra contra si mesma, não sobrando
espaço para mais nada.
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