Idioma extinto
Olavo de Carvalho
A coisa mais difícil é encontrar no Brasil um jornalista, escritor, economista, sociólogo, professor universitário, oficial superior das Forças Armadas, senador, deputado, governador ou ministro que tenha capacidade para acompanhar, mesmo por alto, o movimento das idéias nos EUA. O desnível mental entre os dois países tornou-se abissal e intransponível, por atrofia acelerada de um deles e crescimento ininterrupto do outro. Só para dar uma idéia. O filósofo Leo Strauss morreu em 1973. Alguns de seus discípulos ocupam postos importantes no governo Bush e no partido republicano. A bibliografia de e sobre Strauss e as controvérsias em torno de sua influência política já somam alguns milhares de volumes. No Brasil, ninguém sabe nada sobre isso, e tudo o que os jornais puderam fazer para simular informação � e isto já no segundo mandato do presidente americano -- foi copiar às pressas uns dois artigos do New York Times , escolhidos a esmo entre o que de mais bobo se escreveu a respeito. Mas não falta só informação. O idioma mesmo já não funciona. Simples colunas de jornal � Larry Elder ou Mona Charen, por exemplo, ou mesmo Ann Coulter � tornaram-se intraduzíveis, tal a riqueza do vocabulário e a profusão de alusões culturais subentendidas. A língua da nossa mídia não alcança essas sutilezas. O brasileiro simplesmente já não sabe do que o americano está falando. Acredita cada vez mais numa humanidade unificada, globalizada. Mas cada vez há mais planetas neste planeta � e alguns ficam bem longe. Não espanta que a visão que se tem dos EUA no Brasil regrida velozmente aos estereótipos �anti-imperialistas� dos anos 50. São mais acessíveis à inteligência média e protegem contra a visão súbita do incompreensível. Entre alguns jovens brasileiros, com pretensões letradas, a visão do hipertrófico desenvolvimento intelectual americano das últimas décadas teve uma conseqüência estranha: mergulharam nesse turbilhão e afogaram-se nele. Não vêem mais nada em torno. Conhecem cada linha de Thomas Pynchon, Jane Smiley, Alice Munro. Nunca leram Homero ou Dante. Nem, evidentemente, conhecem o próprio passado cultural americano. A atualidade novaiorquina é a medida da sua consciência histórica. A maior prova da incapacidade de absorver uma cultura estrangeira é a facilidade de ser absorvido por ela. A mente brasileira hoje em dia é tão confusa, tão tortuosa, tão emperrada, tão cercada de prevenções, temores, superstições e fetichismos, que a comunicação das coisas mais simples se torna às vezes impossível. Diga você o que disser, não é jamais respondido na mesma clave. Muito menos respondido no sentido integral daquilo que disse. Cada ouvinte pega uma frase, uma palavra, uma vírgula que o impressionou por motivos inteiramente subjetivos, atribui a ela o sentido que bem entende e lhe opõe, não raro com eloqüência feroz, respostas que vão parar longe da discussão inicial. E não me refiro ao povão, mas às classes letradas, aquelas que têm direito a voz e voto ao menos nas cartas de leitores. Com freqüência, não respondem ao que está sendo dito agora, mas a situações de vinte, trinta anos atrás, que se consolidaram no seu subconsciente e aí instalaram uma rede de reflexos condicionados, prontos para ser acionados, com automatismo cego, à simples audição de certas palavras que evoquem semelhanças remotas, independentemente do contexto novo em que aparecem. É tudo uma mistura de preguiça mental, ignorância, informação faltante ou viciada, suscetibilidade mórbida e, invariavelmente, mau português. Mau português não só na ortografia troncha ou na construção errada, o que seria perdoável até certo ponto, mas no sentido quase que infalivelmentente impróprio das palavras, denotando percepção turva, como num sonho de alcoólatra. Tudo entremeado, conforme a idade do remetente, de eloqüência kitsch para fingir dignidade ou de desleixo afetado para fingir menosprezo. Para quem está longe da terra natal e, privado dos estímulos do ambiente físico, se apega ao idioma como vacina contra a diluição da identidade pátria, ler essas coisas é um tormento: sinto ter vindo de um país que já não existe mais, de uma cultura esquecida, só conservada na memória de um saudosista semilouco, vagando errante pelas ruas de um país longínquo, falando sozinho em idioma extinto.
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