Fantamasgoria verbal
Olavo de Carvalho
Jornal da Tarde, 23 de maio de 2002
Há uma diferença substancial entre aderir a uma
posição política, julgando os fatos com base
nela, e tomar conhecimento de fatos que, por sua força
intrínseca, e mesmo contra a nossa vontade, acabam por mudar
nossa opinião política.
Três obstáculos tornam difícil aos brasileiros
de hoje perceber essa diferença na prática, se
não mesmo apreendê-la conceptualmente.
O primeiro é o tradicional verbalismo nacional. Verbalismo
não é amor às palavras. Também
não é falar muito. É um mau hábito de
percepção verbal, que faz o sujeito reagir
emocionalmente à simples menção de certas
palavras, sem esperar para obter uma adequada
representação imaginativa das coisas e fatos
mencionados.
O segundo obstáculo é o analfabetismo funcional,
endêmico nas nossas classes superiores. Analfabetismo
funcional é impossibilidade de produzir a
representação imaginativa da coisa lida ou ouvida.
É um upgrade do verbalismo. É verbalismo
compulsório.
O terceiro é o adestramento ideológico marxista, que
encobre e protege sob a capa de um discurso automatizado os dois
vícios acima, tornando-os inacessíveis às mais
engenhosas terapêuticas.
O verbalista salta direto do estímulo verbal à
reação emotiva, sem passar pelo trabalho de
imaginação e muito menos pela triagem crítica
das representações imaginativas. Daí sua
tendência a comover-se ante simples jogos vocabulares que, bem
examinados, não significam nada e não podem suscitar
emoção nenhuma. Todo o sucesso do movimento
concretista em poesia deveu-se a esse tipo de leitores.
O analfabeto funcional não pode alcançar a
representação imaginativa: ou permanece
insensível à mensagem verbal ou tem de projetar sobre
ela algum conteúdo da memória, escolhido ao acaso das
associações de idéias e embebido de
conotações valorativas deslocadas do assunto.
O sujeito ideologicamente adestrado já traz na memória
todo um repertório de conteúdos prontos para ser
projetados sobre qualquer mensagem, o que o dispensa e protege do
contato intelectual com o interlocutor e lhe dá ao mesmo
tempo o sentimento tranqüilizante de estar compreendendo tudo
da situação. (Há dois tipos de adestrados
ideológicos: os assumidos, cândidos ou antigos, que
crêem piamente na ideologia salvadora e não hesitam em
oferecê-la como resposta a todos os problemas, e os
enrustidos, maliciosos ou modernos, que se dizem livres de
preconceito ideológico, mas, não tendo nenhum outro
sistema de referências pelo qual orientar-se, continuam
julgando tudo segundo os cânones da ideologia que pensam ter
abandonado.)
No fundo, essas três doenças são a mesma, tomada
em três níveis de gravidade crescente. O sujeito
começa verbalista por herança cultural
doméstica. Passa a analfabeto funcional pela
consolidação do vício tornado
irreversível. Por fim, ao receber instrução
universitária, reveste-se aí daquela carapaça
verbal que, consolidando e legitimando os dois vícios
anteriores sob o rótulo de cultura superior, o tornará
para sempre imune ao impacto de novas mensagens verbais. Só
na educação superior o desenvolvimento da estupidez
lingüística alcançará aquele patamar de
estabilidade que permitirá ao sujeito não compreender
nada e julgar tudo. O verbalista e o analfabeto funcional ainda
têm uma fresta de insegurança, por onde pode entrar um
raio de luz. A instrução universitária veda o
buraco e encerra o sujeito numa escuridão perfeitamente
segura.
Por isso são as pessoas instruídas as que mais
têm dificuldade de atinar com a diferença que
mencionei. Para essas, não há verdade e mentira, fato
e ficção, lógica e nonsense. Há apenas
posições políticas -- a delas e a
dos outros. Na verdade não há nem isso, porque uma
opinião política própria é conhecida
instantaneamente pelo sujeito no simples ato de inventá-la,
ao passo que a alheia requer atenção, estudo e
objetividade, inacessíveis por definição a
essas criaturas. Então, para elas, só existe uma
coisa: sua própria posição política, da
qual a adversária não é senão a
inversão projetiva, produto totalmente imaginário.
Daí a facilidade com que enxergam a unidade de uma
conspiração adversa por trás dos produtos mais
díspares e heterogêneos da inventividade
ideológica humana, compondo com eles o desenho de um inimigo
impossível que é ao mesmo tempo liberal e conservador,
saudosista da Idade Média e democrata burguês,
católico e maçom, sionista e nazista. Que esse inimigo
não possa existir no mundo real, pouco lhes importa: se
deixassem de acreditar na existência dele, veriam que sua
própria existência é fantasmal e
ilusória.
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