O Natal não é para os covardes
Olavo de Carvalho
Na constituição americana não há nenhum �muro de separação� entre religião e Estado. Quando Thomas Jefferson criou essa expressão, foi para proteger as igrejas contra o Estado. É só num mundo pós-orwelliano que ela pode ser usada como pretexto para legitimar a repressão estatal da religião. Mas o confinamento mesmo de Deus na esfera �religiosa�, Sua exclusão dos debates científicos e filosóficos, que hoje até mesmo os religiosos aceitam como cláusula pétrea da ordem pública, já é uma herança mórbida da estupidez iluminista. O �muro de separação� entre conhecimento e fé é uma farsa kantiana erguida entre dois estereótipos. Afinal, por que um sujeito tem fé na Bíblia? Tem porque acha que ela é a Palavra de Deus. Mas por que ele acha que ela é a palavra de Deus? É porque tem fé nela? Esse círculo vicioso exigiria uma capacidade de aposta no escuro que transcende os recursos da média humana. A fé não surge do nada, muito menos da própria fé. É preciso um indício, um sinal, um motivo racionalmente aceitável para acender na alma a chama da confiança em Deus. A definição mesma da �fé� como crença numa doutrina é perversão do sentido da palavra. A doutrina cristã formou-se ao longo dos séculos. Os primeiros fiéis confiaram em Jesus antes de saber nada a respeito dela. Não acreditavam numa doutrina, confiavam num homem. E por que confiavam nele? Ele próprio explicou isso. Quando João Batista, da cadeia, manda perguntar se Ele é o enviado de Deus ou se seria preciso esperar por outro, Jesus não responde com nenhuma doutrina, mas com fatos: � Vão e contem a João as coisas que vocês ouvem e vêem: os cegos enxergam, e os paralíticos andam; os leprosos ficam limpos, e os surdos ouvem; os mortos são ressuscitados, e os pobres recebem boas notícias. E bem-aventurado é aquele que não se ofende comigo .� O que esses versículos ensinam é que a fé é apenas a confiança em que Aquele que devolveu a vida a alguns mortos pode devolvê-la a muitos mais. É um simples raciocínio indutivo, um ato da inteligência racional fundado no conhecimento dos fatos e não uma aposta no escuro. A única diferença entre ele e qualquer outro raciocínio indutivo é que a conclusão a que ele conduz traz em si uma esperança tão luminosa que toda a tristeza e o negativismo acumulados na alma se recusam a aceitá-la. A alma prefere apegar-se à tristeza e ao negativismo porque são seus velhos conhecidos. São a segurança da depressão rotineira contra o apelo da razão à ousadia da confiança. O que se opõe à fé não é a razão, é a covardia. Para legitimar essa covardia ergueram-se masmorras de pseudo-argumentos. No fundo delas, o leproso lambe suas chagas, o cego adora sua cegueira, o paralítico celebra a impossibilidade de caminhar. Os pobres, imaginando-se reis e principes, festejam a rejeição da boa notícia. Orgulhosos da sua impotência, adornam com o nome de �ciência� a teimosia de negar os fatos. Mas seu exemplo não frutifica. Setenta e cinco por cento dos médicos americanos acreditam em curas miraculosas. Acreditam não só porque as vêem, dia após dia, mas porque sabem ou ao menos pressentem que atribui-las à auto-sugestão ou à coincidência seria destruir, no ato, a possibilidade mesma da pesquisa científica em medicina, que se baseia inteiramente no pressuposto de que auto-sugestão e coincidência não têm um poder maior que a intervenção terapêutica fundada no conhecimento racional das causas. O maior escândalo intelectual de todos os tempos é a fraude constitutiva da modernidade, que, excluindo do exame todos os fatos que não tenham uma explicação materialista, conclui que todos os fatos têm uma explicação materialista. A dose de miséria mental em que um sujeito precisa estar mergulhado para gostar desse lixo não é pequena. O Natal é o lembrete cíclico de que esse destino não é obrigatório, de que existe a esperança racional de alguma coisa melhor. Por isso há quem deseje eliminá-lo: para que o chamado da esperança não fira o orgulho dos covardes.
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