Sapientiam Autem Non Vincit Malitia - Foto da águia: Donald Mathis Mande um e-mail para o Olavo Links Textos Informações Página principal

 

Revolução judicial nos EUA

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 27 de junho de 2005

 

No Brasil ninguém está prestando atenção nisso, mas o acontecimento da semana nos EUA foi a sentença da Suprema Corte que, quinta-feira passada, permitiu aos governos locais desapropriar moradias e fazendas em favor de projetos de desenvolvimento privados .

A importância da medida, destinada a ter dentro e em torno dos EUA conseqüências histórico-sociais imensas se levada à prática em toda a sua extensão, reside em que ela modifica radicalmente o sentido da Quinta Emenda constitucional, a qual condicionava o direito de desapropriação ao �uso público� da terra desapropriada. Agora, esse direito beneficiará qualquer grande projeto de desenvolvimento apresentado por empresa privada que prometa gerar por meio dele algum �benefício social�, especialmente, é claro, impostos.

Entendam bem a diferença: não se trata de privatizar uma prerrogativa estatal. Ao contrário: é a prerrogativa estatal de arrancar dinheiro do contribuinte que se sobrepõe brutalmente ao direito de propriedade, arrogando-se o poder de beneficiar um interesse privado em detrimento de outro, e, pior ainda, de fazê-lo em nome da simples promessa dos ganhos fiscais decorrentes e não de uma concreta e imediata �utilidade pública�. Quando o governo desapropria casas para criar uma praça ou hospital, a praça e o hospital são postos diretamente a serviço do povo. A propriedade privada é sacrificada em favor de um ganho social direto. Agora, não é preciso mais isso. O ganho imediato, se vier, será do Estado somente. Para a população, restará a mera expectativa de ganhos indiretos, e em nome dessa expectativa os direitos de propriedade serão sacrificados.

A coiça começou quando um grupo de proprietários residenciais num bairro operário de New London, Connecticut, recorreu à justiça contra empresários que, com o apoio da prefeitura, queriam derrubar suas casas para dar espaço a um hotel, a um SPA e a um conjunto de escritórios � tudo isso privado, naturalmente. Quando o caso chegou à Suprema Corte, a maioria dos juízes deu ganho de causa aos empresários. O voto vencedor foi subscrito por John Paul Stevens, John Anthony Kennedy, David H. Souter, Ruth Bader Ginsburg e Stephen G. Breyer � a fina flor do esquerdismo judicial supremo.

A Juíza Sandra Day O'Connor, uma conservadora nominal que vive flertando com as causas esquerdistas, desta vez defendeu com firmeza o voto dissidente e continuou lutando contra a decisão depois de aprovada. �Qualquer propriedade pode agora ser tomada em benefício de outra parte privada, mas as conseqüências disso não serão randômicas�, escreveu ela: �Os beneficiários, mais provavelmente, estarão entre aqueles cidadãos que têm mais influência e poder no processo político, especialmente as grandes corporações e as empresas de desenvolvimento�. Os conservadores genuínos � William H. Rhenquist, Anthonin Scalia e Clarence Thomas � acompanharam o voto vencido da dra. O'Connor.

O caso basta para ilustrar como é falso o estereótipo � no Brasil, um dogma � que identifica a esquerda com as �causas populares� e a direita com os �interesses da elite�. Não é à toa que nos EUA o povão vota com os conservadores, o beautiful people com os esquerdistas. Também não é por acaso que as fundações bilionárias � Ford, Rockefeller, MacArthur e tutti quanti -- despejam dinheiro nas organizações esquerdistas, inclusive na América Latina, ao passo que não dão um tostão a qualquer projeto que seja ou pareça conservador, pró-cristão, pró-Israel, etc.

A decisão de quinta-feira passada vai contra todas as tradições americanas, mas, quando mega-interesses empresariais se unem à fome de poder estatal dos esquerdistas contra os direitos consagrados, não há tradição que agüente.

�É um tanto chocante acreditar que você pode perder sua casa neste país�, disse Bill Von Winkle, um dos proprietários lesados. Mas Bill vai resistir: diz que não sairá da casa nem quando os tratores aparecerem. �Não vou a parte alguma�, assegura ele: �Essa sentença, definitivamente, não é a última palavra.�

E não é mesmo. No complexo sistema federativo americano, essa decisão da Suprema Corte não obriga em nada os tribunais superiores estaduais, onde a briga vai prosseguir agora, podendo acontecer que o novo critério seja adotado em uns Estados e rejeitado em outros.

Mas o sentido histórico, social e cultural da medida é evidente. Mais que um ataque a determinado direito de propriedade, ela é uma mutação completa dos fundamentos gerais desse direito. A troca do conceito de �uso público� para o de �benefício social� como critério de desapropriação é uma revolução judicial comparável às aberrações propostas no Brasil pelo chamado �direito alternativo�. Funda-se inteiramente na lógica socialista de que os méritos hipotéticos do futuro, bastando ser alegados, tornam-se ipso facto justificativa bastante para a supressão ou modificação dos direitos presentes.

***

O episódio exemplifica, mais uma vez, o abismo que se abriu entre o Brasil e os EUA, países antigamente tão próximos. A imagem dos EUA na opinião pública brasileira chega hoje à completa inversão. A novela �América�, por exemplo, mostra como traços típicos da cultura americana justamente aquelas práticas que foram introduzidas pela esquerda �politicamente correta� para destruir essa cultura. Aqui ninguém ignora que a onda de intromissão estatal na vida privada dos cidadãos é uma novidade criada pelos �liberals� (�liberal� nos EUA significa esquerdista; o que no Brasil é �liberal� chama-se �conservative�, conservador) para implantar o socialismo pela via anestésica da legislação progressiva e do ativismo judicial. Jornais, revistas e livros conservadores denunciam isso dia e noite, mas, para o público brasileiro, a culpa não é dos esquerdistas: é da América.

Um dos mais gostosos privilégios da esquerda internacional é justamente o de ser internacional, enquanto as direitas são locais e sem nenhuma conexão no estrangeiro. Isso permite que, num país, ela explore em vantagem própria a denúncia dos crimes e desvarios que ela mesma praticou em outro.

Uma sociedade em que os pais têm medo de que o Estado tome seus filhos ao menor deslize é mesmo uma monstruosidade. A esquerda americana tem se esforçado muito para que os EUA se transformem precisamente nisso, segura de que, aos olhos do mundo, os resultados deprimentes não serão atribuídos a ela, mas ao país que ela deformou. Se, amputados da identidade do autor, os feitos malignos da esquerda americana podem ser usados para fomentar o anti-americanismo brasileiro, por que não fazê-lo?

Do mesmo modo, o Plano Colômbia de Bill Clinton, obviamente concebido para desmantelar as organizações paramilitares de direita e transferir às FARC o poder dos antigos cartéis, pode ser apresentado aos bocós do Terceiro Mundo como um odioso empreendimento anti-esquerdista do imperialismo americano. A esquerda ganha dinheiro e poder, com a vantagem adicional de aparecer como vítima.

Contribui para dar credibilidade à intrujice a aberrante crença popular brasileira de que nos EUA �não existe esquerda� � quando, na verdade, a esquerda dominou toda a história política e cultural americana do século XX e só a partir da década de 50 surgiu um movimento conservador, raquítico no começo, depois crescendo aos poucos até alcançar sua primeira vitória significativa na eleição de Ronald Reagan. Contarei a história desse movimento numa das próximas colunas.

Por enquanto, só o que falta é a mídia brasileira apresentar a decisão dos esquerdistas da Suprema Corte como prova da maldade dos conservadores americanos.

***

Nestas semanas em que tudo no país está dando errado, está na hora de ler �O Brasil Que Deu Certo�, de José Monir Nasser e Gilberto Zancopé. Publicado pela Editora Tríade do Paraná, já deve estar em todas as livrarias de São Paulo e do Rio. Baseado numa exaustiva pesquisa, escrito com elegância e brilho como raros livros nacionais hoje em dia, conta a história de um sucesso majestoso, a epopéia dos plantadores de soja no Oeste brasileiro. A lição que encerra não é nova, mas vem ilustrada com uma profusão de fatos que a tornam mais clara e didática do que nunca: para o Brasil dar certo, é preciso que os empresários desistam de viver da proteção do Estado e o Estado desista de manter os empresários de joelhos.