O guia genial dos povos
Olavo de Carvalho
Zero Hora, 5 de maio de 2002
Aristóteles dizia que todo governo deve amoldar-se aos
valores dominantes, ao ethos da população. Fracassada
a tentativa de mudar o ethos pela ação do governo, que
marcou história da primeira metade do século XX, a
segunda metade, em vez de abandonar o projeto insano da
construção do homem socialista, se
empenhou em resgatá-lo mediante a simples inversão da
fórmula. Lendo Lukács, Horkheimer, Adorno, Marcuse e
sobretudo Antonio Gramsci, a esquerda internacional foi induzida a
apostar na hipótese de mudar primeiro o ethos para que depois
o novo ethos mude o governo: construir o homem socialista para que
este construa o socialismo. Essa idéia pode ser denominada
genericamente com a expressão gramsciana de
revolução cultural.
Mas o fato é que, antes que qualquer desses pensadores sequer
chegasse a enunciar o projeto, o próprio Stálin, com a
ajuda de Karl Radek, já o havia detalhado e posto em
prática, com a ressalva de que o utilizou para orientar
somente a ação organizada da esquerda internacional,
enquanto no plano interno continuava a usar o velho esquema do ethos
estatal. Basta estudar as diretrizes que ele formulou na
década de 30 para o Partido Comunista Americano -- esquecer
os proletários, concentrar-se na arregimentação
de companheiros de viagem entre as celebridades e os
formadores de opinião -- para perceber que o
Velho já servia o bolo quando Gramsci ainda
perguntava o preço da farinha.
Sob esse aspecto, os autores que com suas idéias nominalmente
heterodoxas deram novo alento a uma militância desiludida com
o que então lhe parecia ser a pobreza intelectual do
stalinismo, não foram senão stalinistas que se
ignoravam a si mesmos. Stálin, antecipando-se de
décadas a gerações inteiras de intelectuais
pretensamente iluminados, realizou literalmente a promessa contida
no título recebido de seu círculo de bajuladores mais
próximos: ele foi realmente o guia genial dos
povos. Nunca houve nem haverá um esquerdista mais
inteligente que Stalin, e o motivo disto é simples: a
verdadeira natureza do socialismo só se revela a quem a
encare com frio realismo, despindo-se da ilusões humanistas e
progressistas que ele mesmo dissemina ad usum
delphini.
Toda a história política, social, psicológica,
religiosa e intelectual desse período que se prolonga
até hoje é apenas o conjunto das
manifestações exteriorizadas da
revolução cultural marxista, um movimento
unitário e organizado de envergadura tão gigantesca
que, aos olhos do observador leigo, se torna inabarcável e
invisível ao ponto de seus efeitos acabarem sendo explicados
como produtos da mera coincidência.
Em parte, essa impressão reflete apenas o fato de que
movimentos desse tipo não se disseminam pela
arregimentação formal de militantes organizados, mas
por impregnação passiva da imaginação de
milhares de idiotas úteis em resposta à iniciativa
discreta de um número muito pequeno de agentes. Desde suas
primeiras experiências de cooptação de
intelectuais, Willi Münzenberg, o executivo principal do plano
Stalin-Radek, ficou impressionado com a facilidade com que suas
palavras-de-ordem se disseminavam entre os intelectuais -- uma
docilidade espontânea e inconsciente que jamais a propaganda
comunista havia encontrado entre os proletários. Entre os
letrados a ação comunista era tão fértil
que Münzenberg a chamava criação de
coelhos. Pode parecer estranho que logo as camadas mais
esclarecidas sejam assim fáceis de manipular, mas o
fenômeno tem uma explicação bem simples. Se as
pessoas menos cultas resistem à manipulação
porque são desconfiadas da novidade e apegadas a costumes
tradicionais, os intelectuais capazes de iniciativa pessoal
originária, de resposta direta e criativa aos dados da
experiência real são muito raros: à maioria, que
já não conta com a tradição para
guiá-la nem tem forças para uma reação
personalizada, só resta seguir a moda do dia. Nove
décimos da atividade mental das classes letradas são
imitação, macaquice, eco passivo de palavras-de-ordem
que ninguém sabe de onde vieram nem para onde levam.
Essa proporção tende a aumentar na medida mesma da
ampliação das oportunidades de acesso às
profissões intelectuais, cada vez mais abertas a
multidões de incompetentes -- o proletariado
intelectual como o chamava Otto Maria Carpeaux -- cujo
único teste para a admissão no grêmio é,
justamente, a facilidade de impregnação dos cacoetes
mentais mais típicos desse grupo social. Daí a
proliferação de tantas modas intelectuais,
artísticas e políticas cuja absurdidade grotesca
é claramente percebida pelo homem das ruas, mas que aos de
dentro do círculo parecem a encarnação mais
pura do elevado e do sublime.
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