R�u confesso
Olavo de Carvalho
No encontro que teve com Donald Rumsfeld, o vice-presidente dubl� de ministro da Defesa, Jos� Alencar, fez uma declara��o que expressa, da maneira mais pura, o estado de completa inconsci�ncia moral em que este pa�s vive mergulhado desde h� alguns anos. Esquivando-se de revelar se considera ou n�o as Farc uma organiza��o terrorista, ele admitiu que "n�o concorda com os m�todos de arrecada��o financeira do grupo guerrilheiro". Esses m�todos, como at� as crian�as sabem e nem mesmo o senhor vice-presidente ignora, s�o o narcotr�fico e os seq�estros. Sua Excel�ncia n�o poderia mesmo concordar com essas porcarias, mas o problema � o seguinte: se uma autoridade testemunha a pr�tica de um crime, tem ela o direito de limitar-se a "discordar" dele, em vez de mandar investig�-lo e puni-lo? A brandura quase carinhosa da express�o usada por Sua Excel�ncia ante os feitos sangrentos das Farc sugere que, entre o crime e a lei, a diferen�a � de mera opini�o, a ser dirimida educadamente num debate democr�tico entre o criminoso e o juiz, sem maior risco para o primeiro, exceto o de perder a discuss�o. Os fil�sofos gregos chamavam, a essa monumental confus�o de planos, "met�basis eis allo gu�nos": passagem a outro g�nero. Era algo como, numa discuss�o sobre equa��es trigonom�tricas, apelar a argumentos de biologia. Denotava, evidentemente, miolo mole. Mas o senhor Alencar n�o � propriamente um homem de miolo mole. � apenas um pol�tico de terceira ordem que, no empenho de se manter no cargo, assume compromissos contradit�rios e acaba revelando, sem querer, a confus�o mental em que se meteu ao aceitar responsabilidades superiores ao seu horizonte de compreens�o. Dividido entre o desejo de se fingir de confi�vel ao visitante americano e o de se fazer de bonzinho ante um governo cujo compromisso de apoio m�tuo com a narcoguerrilha colombiana � p�blico e not�rio, seria injusto exigir que o senhor Alencar conservasse a lucidez de uma consci�ncia �ntegra. Caprichando um pouco mais no show de incongru�ncia, o vice-presidente declarou ainda que, no seu entender, ningu�m deve se meter nos assuntos internos de outros pa�ses. Ora, Sua Excel�ncia sabe perfeitamente bem que as Farc vendem 200 toneladas anuais de coca�na no mercado brasileiro, usam o nosso territ�rio como entreposto para a compra ilegal de armas, manipulam o narcotr�fico nos morros do Rio de Janeiro, penetram a nossa Amaz�nia em busca de recrutas brasileiros e, como o comando do Ex�rcito volta e meia adverte, atiram nos nossos soldados dos batalh�es de fronteira. Salvo engano, a defesa da nossa integridade territorial incumbe ao ministro da Defesa, isto �, ao senhor Jos� Alencar. Pois bem, diante de t�o �bvios ataques armados � nossa soberania, que � que faz o ministro? Pede a palavra no debate acad�mico. Ele sabe que uma conduta � criminosa, que ela p�e em risco a soberania nacional e que ela est� sob a sua jurisdi��o direta, mas nada faz para coibi-la al�m de declarar, com toda a pondera��o diplom�tica imagin�vel, que n�o gosta muito dela. Para qualquer observador que conserve ainda a capacidade de discernimento jur�dico, � �bvio que, nesse instante, o senhor ministro e vice-presidente se tornou r�u confesso do crime de prevarica��o. Mas tamb�m � �bvio que, entre os poucos que conservam essa capacidade, quase todos trataram de atrofi�-la de prop�sito para sobreviver politicamente (ou at� financeiramente) nesse labirinto de mentiras e alucina��es que � o governo Lula. Por isso � certo que a confiss�o expl�cita, em vez de tirar o senhor Alencar da vice-presid�ncia e do minist�rio e mand�-lo para a cadeia como aconteceria numa situa��o normal, s� contribuir� para mant�-lo nos seus dois cargos e no confort�vel exerc�cio de direitos que, desde quarta-feira, ele n�o deveria ter mais. |