Saramago e os judeus
Olavo de Carvalho
O sr. Jos� Saramago proclama que a Igreja n�o tem nenhum direito de emitir opini�es sobre seus livros, mas ele pr�prio, al�m de opinar abundantemente sobre os livros da Igreja, ainda se atribui, com humildade exemplar, a divina miss�o de reescrev�-los. Primeiro foram os Evangelhos, agora � o Livro de Samuel. O jovem Davi, assegura-nos o inspirado escritor, n�o foi � batalha com o gigante Golias armado somente de uma funda, mas de uma pistola. Esse importante detalhe provavelmente escapou ao profeta hebraico em raz�o de sua inexperi�ncia em tecnologia b�lica, um ramo em que o Nobel portugu�s se mant�m atualizad�ssimo por meio de consultas ao sr. Yasser Arafat, n�o sei se tamb�m �s Farc. Copy desk da revela��o eterna, tarimbado especialista em censura e corte de textos -- que o digam os jornalistas portugueses dos bons tempos da ditadura Otelo Saraiva --, por que n�o haveria esse velho ateu e comunista de sentir-se tamb�m habilitado a fazer cobran�as morais aos judeus de hoje em nome dos judeus de ontem? Para humilhar aqueles patifes, ele insinua que os mortos de Auschwitz, no Para�so, coram de vergonha de Sharon e tutti quanti. Deploravelmente, ele escreve isso no mesmo par�grafo em que acusa os israelenses de usar a recorda��o do Holocausto como instrumento de chantagem psicol�gica -- uma fatal pisada no tomate que ser� interpretada pelos maliciosos como ato falho freudiano, mas na qual eu prefiro ver uma amostra do rigor dos procedimentos hermen�uticos com que esse c�rebro not�vel interpreta n�o somente os escritos do Todo-Poderoso, mas at� os dele pr�prio, que � um pouco menos poderoso. Baseado nesse m�todo revolucion�rio, ele afirma que os judeus est�o �contaminados pela monstruosa e enraizada �certeza� de que neste catastr�fico e absurdo mundo existe um povo eleito por Deus e que, portanto, est�o automaticamente justificadas e autorizadas... todas as a��es pr�prias�. Quem quer que tenha lido a B�blia pelo m�todo antigo, denominado �alfabetiza��o�, sabe que a condi��o de povo eleito, longe de isentar os judeus de responder por seus pecados, os investe do pesad�ssimo encargo da profecia, sujeitando-os a tem�veis cobran�as e castigos da parte de Deus. Segundo estudiosos treinados nesse m�todo, como Eric Voegelin, James Billington e Norman Cohn, o privil�gio autoconcedido da indulg�ncia antecipada e incondicional � atributo exclusivo das seitas gn�sticas que deram origem �s ideologias totalit�rias modernas: nacional-socialismo e socialismo internacional. Seja no altar da deusa Ra�a ou da deusa Hist�ria, quem sempre alegou o dogma da sua pr�pria concep��o imaculada para dar a seus pecados uma aura de santidade n�o foram os judeus: foram os Saramagos. Que Saramago em pessoa n�o se d� conta disso e ingenuamente projete sobre uma ra�a a conduta que � especificamente a do seu pr�prio partido, eis uma coisa ali�s bastante l�gica, pois ningu�m poderia desfrutar dos benef�cios da autobeatifica��o se esta n�o o privasse instantaneamente, e talvez para sempre, da possibilidade mesma de enxergar seus pr�prios atos antes de julgar os alheios. Elevando-se por decreto pr�prio �s alturas de um juiz iluminado do povo judeu, um homem n�o pode deixar de mergulhar, por choque de retorno, naquela total inconsci�ncia de quem j� n�o consegue seguir a l�gica do que ele pr�prio escreve, nem portanto perceber que, a poucas linhas de intervalo, chantageia e acusa o chantageado de chantagem. Tal � o m�todo hermen�utico de Saramago. Para mim, a mais sugestiva aprecia��o cr�tica que j� se fez desse autor saiu anos atr�s na coluna do Agamenon Mendes Pedreira: sob a foto de um burro atrelado a uma carro�a, a legenda -- �O escritor Jos� Saramago puxando a marcha dos Sem-Terra.� ***
O retorno de Hugo Ch�vez ao poder mostrou, mais uma vez na Hist�ria, que � mais f�cil implantar uma ditadura por meios democr�ticos do que uma democracia por meios ditatoriais. Arrivistas como Ch�vez e Hitler apostam na primeira dessas hip�teses e saem ganhando. Os militares latino-americanos que apostam na segunda quase sempre perdem: ou s�o derrotados logo de cara, ou se deixam prender na sua pr�pria arapuca autorit�ria durante d�cadas sem saber como sair, ou, quando conseguem restaurar a normalidade democr�tica, acabam no banco dos r�us de algum tribunal de lindos democratas que n�o se lembram mais da tem�vel alternativa da qual foram salvos pelos acusados. Durante anos Ch�vez e Hitler constru�ram seus Estados policiais, pe�a por pe�a, dentro da Constitui��o, com fort�ssimo respaldo popular e o apoio do Parlamento e da Suprema Corte, sem que quase ningu�m na m�dia internacional se desse conta da ratoeira sinistra em que estavam metendo seus respectivos povos. Se houvesse um golpe militar contra Hitler em 1937 ou 1938, seria sem d�vida condenado universalmente como uma ruptura da ordem constitucional, um atentado contra a democracia. Assim foi recebido o golpe contra Ch�vez -- da� a sensa��o de al�vio, perfeitamente ilus�ria, que a volta do sargent�o comunista inspirou mesmo aos que o detestavam. Mas a experi�ncia venezuelana ensina tamb�m que, se n�o � poss�vel fazer uma revolu��o gramsciana �desde cima�, artificialmente e sem a lenta prepara��o do ambiente cultural, tamb�m n�o � poss�vel desfaz�-la de repente, seja por meio das armas ou de improvisos eleitorais, sem a pr�via e trabalhosa dissolu��o da atmosfera que a possibilitou. Os vietcongs e os guerrilheiros de Chiapas j� haviam demonstrado isso, ganhando em triplo na m�dia o que perderam no campo de batalha. Mas at� hoje o sentido da express�o �revolu��o cultural� n�o parece ter entrado na cabe�a dos nossos liberais e conservadores. *** Maria Ros�lia Campos consta do Dicion�rio dos Pintores do Brasil de Jo�o Medeiros como artista pl�stica de import�ncia excepcional. De suas obras, a mais conhecida � o mural da Santa Ceia pintado na Igreja de Nossa Senhora de F�tima. Provavelmente t�o versado em mat�ria de pintura quanto o sr. Saramago em assuntos religiosos, um vig�rio cretino mandou caiar o mural, assim desaparecido sob uma brancura que ningu�m dir� ser a da alma de S. Revma., mas que talvez seja a do seu rol de conhecimentos art�sticos. A pintora, que j� passou dos oitenta anos, n�o tem �nimo de protestar, mas a cidade do Rio de Janeiro n�o pode sofrer calada mais este dano ao seu patrim�nio cultural. Pe�o pois aos leitores que, quando passarem pelo templo lesado, n�o deixem de dizer poucas e boas ao Saramago de batina. *** O PFL, que em mat�ria de convic��es se aproxima velozmente do peso at�mico zero, atingir� essa meta t�o logo celebre algum acordo com a tucanidade, tucanizando-se ele pr�prio. Da� por diante, seu destino s� depender� do seguinte fator: para votar num partido � preciso respeit�-lo -- e ningu�m respeita mulher de malandro.
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