Ci�ncia e linguagem
Olavo de Carvalho
Que id�ia poderia fazer das obras de Shakespeare aquele que as concebesse como mero fato ling��stico, fazendo total abstra��o das qualidades que as tornam dignas de aten��o? Que conhecimento teria da realidade de S. Francisco e de Hitler aquele que os apreendesse somente como dados hist�ricos, deixando totalmente de lado as qualidades que a nossos olhos tornam o primeiro am�vel e o segundo tem�vel? Tal � a id�ia que faz da esp�cie humana o pensador que acredita poder conceb�-la somente como fato da natureza, omitindo por completo o valor que, a seus pr�prios olhos, tem a sua condi��o pessoal de homem e n�o de bicho. A id�ia do homem como puro animal � apenas uma analogia, uma figura de linguagem para uso em determinados gr�mios profissionais, e n�o um conceito rigoroso obtido da experi�ncia. Nenhum ser humano pode, com efeito, gabar-se de ter tido jamais a experi�ncia concreta de um seu semelhante como animal puro e simples, abstra�do das qualidades que tornam a sua vida mais digna de ser preservada do que, por exemplo, a de um sapo. Esse homem-animal � mera suposi��o imaginativa, obtida por exclus�o mental de tra�os que, na experi�ncia, v�m sempre inclusos e jamais faltantes. Ele �, admito, o homem da biologia, mas a biologia n�o tem a m�nima autoridade para decretar que esse � o homem real, j� que ela come�a, precisamente, por excluir dele, considerado enquanto seu objeto de estudo, tudo o que n�o possa reduzir-se de algum modo � animalidade, e nenhuma ci�ncia tem meios leg�timos para se pronunciar sobre aquilo que a priori, e na sua defini��o mesma, est� exclu�do do seu dom�nio de observa��o estrita. Mesmo quando, atendo-se rigorosamente aos limites do seu campo, ela a� encontre ou pretenda encontrar algum princ�pio de "explica��o" para aquilo que est� para al�m dele - como por exemplo a etologia "explica" certas condutas humanas a partir de condutas animais -, essa explica��o jamais ter�, logicamente falando, validade cognitiva superior � de uma simples analogia, de uma similitude �s vezes bem long�nqua e for�ada. Um exemplo caracter�stico s�o as teorias que pretendem explicar as guerras humanas pela agressividade animal, sem ter em conta o fato bem conhecido de que a emo��o dominante do soldado em batalha n�o � a raiva e sim o medo - um medo que, no animal, o faria fugir em desabalada carreira em vez de avan�ar como o soldado humano, impelido pelo medo maior da corte marcial, da desonra, do castigo infernal ou de qualquer outro malef�cio abstrato completamente estranho �s motiva��es do mais sutil dos leopardos ou do mais genial dos orangotangos. Sim, a dura verdade � que muitos homens de ci�ncia, ou pensadores que tomam da palavra em nome da ci�ncia - e, entre eles, justamente aqueles que hoje em dia mais freq�entemente representam a autoridade do consenso cient�fico nos debates p�blicos - est�o num n�vel de pensamento deploravelmente primitivo, fetichista, n�o s�o sequer capazes de distinguir o concreto do abstrato, e, tirando conclus�es de recortes abstrativos projetados pela sua pr�pria mente sobre as coisas, acreditam piamente estar raciocinando sobre as coisas mesmas. A brutal imperfei��o epistemol�gica, a quase irracionalidade dos fundamentos cognitivos da maior parte das ci�ncias hoje em dia contrasta miseravelmente com o volume de dados que manipulam e com a finura dos procedimentos operacionais de formaliza��o - uma racionalidade menor e secund�ria - com que os articulam. Nenhuma acumula��o de dados, nenhum aperfei�oamento l�gico-formal da teoria aumentar� de um �tomo de validade epistemol�gica um edif�cio te�rico erguido sobre conceitos imagin�rios, hipot�ticos ou puramente convencionais. Qualquer homem de ci�ncia s�rio conhece os limites estritos do campo de validade a que podem se estender suas conclus�es, mas a mosca azul dos debates p�blicos faz com que poucos resistam � tenta��o de extrair cosmovis�es inteiras - se n�o teologias inteiras - de uns quantos dados zool�gicos, gen�ticos ou astrof�sicos. Nenhuma ci�ncia pode estar segura de apreender algo da "realidade" como tal quando n�o tem plena consci�ncia do encaixe entre o seu dom�nio estrito e o mundo circundante da experi�ncia humana direta, e esse encaixe, em cada uma das ci�ncias conhecidas, � perfeitamente problem�tico, se n�o totalmente desconhecido. E, se esses homens t�m dificuldade at� em compreender as limita��es dos conceitos de base das pr�prias ci�ncias que praticam, com quanto maior inabilidade n�o h�o de manejar os conceitos muito mais abrangentes e abstratos da ontologia, da metaf�sica ou da teologia?
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