Fanatismo epidêmico
Olavo de Carvalho
Recebi de amigos uma coleção de matérias anti-americanas e anti-Bush saídas na mídia nacional nos últimos meses. É um massacre total, de uma virulência insana, empreendido com o espírito do mais fanático unanimismo e absoluta exclusão da possibilidade de confronto, mesmo desigual, com argumentos discordantes. Não há mais como disfarçar: o jornalismo brasileiro na sua quase totalidade tornou-se propaganda assumida, manipulação cínica, ativismo político explícito. Não tenho a mínima pretensão de, com artiguinhos semanais de duas laudas, oferecer resistência eficaz à epidemia goebbelsiana. Limito-me a anotar algum exemplo mais simples, para estimular os leitores a buscar nas fontes estrangeiras as comparações que o jornalismo local lhes nega. Aqui vai mais um. A pesquisa do epidemiologista Les Roberts, segundo a qual a mortalidade no Iraque teve um acréscimo de 98 mil pessoas desde o começo da guerra, foi celebrada nesta parte do mundo como descoberta científica idônea, tanto mais insuspeita por ter emergido da Universidade Johns Hopkins (que um dos entusiastas da pesquisa chega a alardear como “conservadora”, embora conhecendo-a tão bem que grafa “Johns” sem o “s”) e publicada na respeitável revista médica Lancet. Jornalistas, professores e até acadêmicos de fardão, que deveriam ter um pouco mais de compostura intelectual, festejaram a notícia como a prova definitiva da maldade de George W. Bush. Como sempre acontece nesses foguetórios instantâneos, é tudo mentira grossa. No que diz respeito à credibilidade das fontes, a pesquisa foi feita em associação com a Universidade de al-Mustansiriya, uma das mais fanáticas do mundo islâmico. Les Roberts é mais conhecido como ativista radical do que como homem de ciência. E a Lancet, cujo prestígio vem sofrendo sucessivos abalos desde que confessou ter recebido dinheiro de um grupo de advogados para alardear falsamente que vacinas causavam autismo, acabou de liquidar seu restinho de credibilidade ao admitir que publicara a pesquisa de Roberts antecipadamente, saltando as consultas de praxe ao conselho de redação, com o propósito deliberado de influenciar as eleições americanas. Segundo o jornalista científico Michael Fumento, a revista tornou-se, com isso, a “al-Jazeera do Tâmisa”. No conteúdo, a pesquisa está cheia de artimanhas metodológicas calculadas para produzir o resultado escandaloso. Na época em que a mídia pretendia culpar as sanções econômicas internacionais pela desgraça do Iraque, a mortalidade média alegada mundialmente, com base em dados da ONU, era de oito para cada mil iraquianos por ano. Na tabulação de Roberts, essa média foi baixada para cinco, sem explicação, produzindo artificialmente a impressão de aumento anormal no período seguinte. Os resultados obtidos foram, mesmo assim, decepcionantemente elásticos: dada a precariedade das informações, colhidas de entrevistas com mil cidadãos iraquianos confiados tão-somente na sua memória pessoal dos óbitos, o cálculo final das mortes ocorridas desde o início da guerra dava algo entre oito mil e 194 mil. Não poderia haver incerteza maior. Como sair dessa? Roberts e sua equipe não hesitaram: tiraram a média e publicaram. Como observou o colunista Fred Kaplan na Slate, “isso não é uma estimativa: é um jogo de dardo-ao-alvo”. Um jornalismo decente teria dado espaço ao menos a algumas das objeções feitas à pesquisa, todas de ordem científico-matemática, que saíram na mídia americana. Mas hoje em dia essa sugestão está excluída a priori como inaceitável provocação direitista. Quem há de querer cumprir a velha regra de “ouvir o outro lado”, sabendo que o outro lado é o lado direito? Para poupar os jornalistas brasileiros de semelhante humilhação, que sua consciência profissional jamais lhes perdoaria, o leitor pode assumir o encargo de pesquisar por si mesmo. Eis algumas fontes: http://techcentralstation.com/110104H.html; http://www.weeklystandard.com/Content/Public/Articles/000/000/004/858gwbza.asp; http://www.stats.org/record.jsp?type=news&ID=481; |