O nome da coisa
Olavo de Carvalho
O senador Jefferson Perez tem toda a razão ao afirmar que pela primeira vez no Brasil um partido domina o poder e a sociedade civil organizada. Onde ele erra é no termo geral com que sintetiza o estado de coisas. Mexicanização não é sequer um conceito descritivo, é uma figura de linguagem, que alude a um fenômeno pela vaga semelhança com outro. Mas o que se passa aqui não é tão misterioso que nem tenha um nome apropriado. O sr. Perez chega perto dele ao usar a expressão sociedade civil organizada, mas logo perde a pista ao derivar para uma analogia imprópria. Sociedade civil organizada é o termo técnico com que Antonio Gramsci designa a rede de entidades extrapartidárias a serviço do Partido. Dizer que o Partido as controla é portanto redundante: elas constituem, segundo Gramsci, o Partido ampliado. Quando esse rede abrange os principais canais de expressão da sociedade, não há mais opinião pública: há apenas a voz do Partido, ecoada em muitos tons e oitavas que simulam variedade espontânea. É a materialização da hegemonia cultural que monopoliza as idéias em circulação e forja até o vocabulário dos debates públicos, adquirindo sobre a mentalidade geral o poder onipresente e invisível de uma lei natural, de um imperativo categórico, de um mandamento divino (sic). O fato mesmo de aquela expressão ser usada por muitos como termo neutro, sem a menor consciência de sua origem e de suas implicações estratégicas, basta para mostrar o alcance da hegemonia. A organização da sociedade civil, diz Gramsci, deve preceder de muito a conquista do Estado. Nos tempos da ditadura, quando os generais imaginavam dominar tudo porque tinham a guerrilha sob seus pés, a elite do Partidão, bem tolerada pelo governo porque alheia à violência armada, tratava de estudar a estratégia gramsciana e colocá-la em prática diante dos olhos cegos da autoridade. O Brasil de hoje nasceu aí. O próprio sr. Perez admite que naquela época a esquerda já adquiriu o controle da sociedade civil. Mas ele erra também quando limita as possibilidades de explicação do fenômeno a uma alternativa paralisante: conspiração ou coincidência? O que há não é uma coisa nem a outra. É grande estratégia. A adesão do PCB ao gramscismo obedeceu à nova linha geral adotada pelo Politburô soviético entre 1958 e 1960 (v. Anatoliy Golitsyn, The Perestroika Deception, London, Edward Harle, 1995), que, inspirada no exemplo da NEP leninista de 1921, recomendou a todos os partidos comunistas o fim do monolitismo stalinista, concessões aos interesses capitalistas privados, o eventual abandono da identidade comunista explícita e a fragmentação num pluripartidarismo aparente, a penetração ampla na sociedade civil para absorver todas as correntes de opinião aproveitáveis, de modo a marginalizar o anticomunismo e seduzir até os conservadores para as belezas do socialismo com face humana encarnado na perestroika. No plano internacional, essa política, calculada para durar quatro décadas, visava a formar uma Europa socialdemocrática unida do Atlântico aos Urais, isolando os EUA e induzindo-os a desarmar-se ideologicamente (e militarmente) em nome da convergência anunciada de capitalismo e socialismo numa nova ordem global apadrinhada pela ONU. Anestesiado o sentimento anticomunista, os EUA festejaram o fim da Guerra Fria, sem perceber que com isso apenas cediam ao inimigo o direito de prossegui-la unilateralmente em condições ideais, nas quais toda resistência já estava de antemão condenada como saudosismo, desamor à paz e, é claro, paranóia. Com alguns percalços vistosos que não abalaram em nada o seu centro orientador, a estratégia alcançou o objetivo desejado, como se vê hoje pela hostilidade global anti-EUA e anti-Israel. No tempo de Stalin, isso seria sonhar demais. Hoje é uma realidade. Perto disso, a Revolução Mexicana foi apenas um fuzuê de caipiras. O que se passa no Brasil é a Revolução Gramsciana, manifestação local da grande estratégia comunista mundial. É preciso estar muito, muito alienado para não enxergar uma coisa tão patente.
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